Quando Está Frio no Tempo do Frio
Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas
O natural é o agradável só por ser natural.Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno —
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no fato de aceitar —
No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da terra no cimo do Inverno.Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência,
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.
Poemas sobre Sublime
25 resultadosMelancolia
Oh dôce luz! oh lua!
Que luz suave a tua,
E como se insinua
Em alma que fluctua
De engano em desengano!
Oh creação sublime!
A tua luz reprime
As tentações do crime,
E á dôr que nos opprime
Abres-lhe um oceano!É esse céo um lago,
E tu, reflexo vago
D’um sol, como o que eu trago
No seio, onde o afago,
No seio, onde o aperto?
Oh luz orphã do dia!
Que mystica harmonia
Ha n’essa luz tão fria,
E a sombra que me guia
N’este areal deserto!Embora as nuvens trajem
De dia outra roupagem,
O sol, de que és imagem,
Não tem essa linguagem
Que encanta, que namora!
Fita-te a gente, estuda,
(Sem mêdo que se illuda)
Essa linguagem muda…
O teu olhar ajuda…
E a gente sente e chora!Ah! sempre que descrevas
A orbita que levas,
Confia-me o que escrevas
De quanto vês nas trevas,
Que a luz do sol encobre!
As victimas, que escutas,
De traças mais astutas
Que as d’essas féras brutas…
Reconciliação
A paixão traz a dor! — Quem é que acalma
Coração em angústia que sofreu perda tal?
As horas fugidias — para onde é que voaram?
O que há de mais belo em vão te coube em sorte!
Turbado está o espírito, o agir emaranhado;
O mundo sublime — como foge aos sentidos!Mas eis, com asas de anjo, surge a música,
Entrelaça aos milhões os sons aos sons
Pra varar, lado a lado, a alma humana
E de todo a afogar em eterna beleza:
Marejado o olhar, na mais alta saudade
Sente o preço divino dos sons e o das lágrimas.E assim aliviado, nota em breve o coração
Que vive ainda e pulsa e quer pulsar,
Pra ofertar-se de vontade própria e livre
De pura gratidão pela dádiva magnânima.
Sentiu-se então — oh! pudesse durar sempre! —
A ventura dobrada da música e do amor.Tradução de Paulo Quintela
Imperfeição
Sou eu poeta? Às vezes, penso e digo,
Não sou poeta, não.
Não sou poeta porque não consigo
Vencer o que em mim há de imperfeição.Sou eu poeta? E muitas vezes penso
E sinto que o não sou.
Ser poeta é ter um voo mais extenso,
É ter um outro voo.Sou eu poeta? Às vezes isso mesmo
Me custa acreditar.
Que ser poeta é amar a vida inteira, a esmo,
E infelizmente eu não a posso amar.Sou eu poeta? Um vento de sol-posto
Passa junto a mim, numa vertigem.
E como o vento eu sofro de um desgosto
De que não sei nem saberei a origem.Mas ser poeta é qualquer coisa mais.
É ter sublimes adivinhações.
É ser, tal como são os imortais,
Da estirpe de Camões.
Os Arlequins – Sátira
Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, toma a vergasta,
E os arlequins fustiga!Como aos olhos de Roma,
— Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, —
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caías,
Ó raio chamejante!Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro,
Tinha de Fachos Mil a Noite Ornado
1
Tinha de fachos mil a noite ornado
A argentada Princesa:
De amor, graça e beleza
O campo etéreo Vénus povoado.2
A Terra, com perfume precioso
Em torno recendia;
E plácido dormia
Sobre a dourada areia o pego undoso;3
Quando veio roubar a formosura
De tudo o que é criado,
Márcia, fiel traslado
Da beleza do Céu, sublime e pura;4
Com Lírios, que estendeu, vestiu ufana
A forma divinal;
Em aceso coral
Tingiu, sorrindo, a boca soberana,5
As madeixas tomou das veias de ouro,
Nos olhos pôs safiras,
Que das setas, que atiras,
São, fero Amor, o mais caudal tesouro.6
Todos seus dons lhe pôs o Céu no peito;
Como orna o Régio Sposo,
C’o enfeite mais custoso,
A Princesa, a quem rende a alma, sujeito.7
Eu vi afadigados os Amores,
E as Graças, que cantavam
Enquanto se moldavam
Seus graciosos gestos vencedores.8
Das Sereias o canto deleitoso
Lhe nasceu sem estudo;
Não és Bom, nem és Mau
Não és bom, nem és mau: és triste e humano…
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se a arder no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.
Pobre, no bem como no mal padeces;
E rolando num vórtice insano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.
Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas com as virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:
E no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.
Não!
Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio:
Mas ouve-me, receio
Tomar-te desgraçada:
O homem, minha amada,
Não perde nada, goza;
Mas a mulher é rosa…
Sim, a mulher é flor!Ora e a flor, vê tu
No que ela se resume…
Faltando-lhe o perfume,
Que é a essência dela,
A mais viçosa e bela
Vê-a a gente e… basta.
Sê sempre, sempre, casta!
Terás quanto possuo!Terás, enquanto a mim
Me alumiar teu rosto,
Uma alma toda gosto,
Enlevo, riso, encanto!
Depois terás meu pranto
Nas praias solitárias…
Ondas tumultuárias
De lágrimas sem fim!À noite, que o pesar
Me arrebatar de cada,
Irei na campa rasa
Que resguardar teus ossos,
Ah! recordando os nossos
Tão venturosos dias,
Fazer-te as cinzas frias
Ainda palpitar!Mil beijos, doce bem,
Darei no pó sagrado,
Em que se houver tornado
Teu corpo tão galante!
Com pena, minha amante,
De não ter a morte
Caído a mim em sorte…
Caído em mim também!
Hino à Dor
Sorri com mais doçura a boca de quem sofre,
Embora amargue o fel que os seus lábios beberam;
É mais ardente o olhar onde, como um aljofre,
A Dor se condensou e as lágrimas correram.Soa, como se um beijo ou uma carícia fosse,
A voz que a soluçar na Desgraça aprendeu;
E não há para nós consolação mais doce
Que o regaço de quem muito amou e sofreu.Voz, que jamais vibrou num soluço de mágoa,
Ao nosso coração nunca pode chegar…
Mas o pranto, ao cair duns olhos rasos de água,
Torna mais penetrante e mais profundo o olhar.Lábio, que só bebeu na fonte da Alegria,
É frio, como o olhar de quem nunca chorou;
A Bondade é uma flor que se alimenta e cria
Dos resíduos que a Dor no coração deixou.Em tudo quanto existe o Sofrimento imprime
Uma augusta expressão… mesmo a Suprema Graça,
Dando aos versos do Poeta esse esmalte sublime
Que torna imorredoira a Inspiração que passa.É por isso que a Dor, sem trégua nem guarida,
Romance de uma Freira Indo às Caldas
Belisa, aquela beldade,
Cujas perfeições são tais,
Que a formosura e juízo
Vivem nela muito em paz;
Aquela Circe das almas,
Cuja voz sempre será
Encanto dos alvedrios
E o pasmo de Portugal;
Enferma, bem que sublime,
De uns achaques mostras dá,
Pois às deidades também
Os males se atrevem já.
Por se livrar das moléstias
Que a costumam magoar,
Se negou remédio às vidas,
Por remédio às Caldas vai.
Aquele sol escondido
Entre as nuvens de um saial,
Se ocaso faz de um convento,
Do campo eclíptica faz.
Mas, logo que os campos lustra,
Alento e desmaios dá
Ao dia para luzir,
Ao Sol para se eclipsar.
Aos prados, a quem o Estio
Despe a gala natural,
Quando os olhos podem ver,
Flores tornam a enfeitar.
Dando-lhe a música os bosques
Com citara de cristal,
Parece entre os ramos verdes
Cada rouxinol um Brás.
A viração que entre as folhas
Sempre buliçosa está,
Ou já murmure ou suspire,
Faz de cada assopro um ai.
Carta (a um Amigo que me Pediu Versos)
Como hei-de ser um Petrarca,
Cantar como um rouxinol,
Se o meu termómetro marca
Quarenta e dois graus ao sol!Da lira bárbara e tosca
Nem saem trovas d’Alfama.
Enxota o Pégaso a mosca,
E eu durmo a sesta na cama.A hipocondria maciça
Conduzo-a, não há remédio,
Na jumenta da preguiça
Pelas charnecas do tédio.Eu trago a inspiração oca,
Ando abatido, ando mono;
Meus versos abrem a boca,
Como os porteiros com sono.Não tenho a rima imprevista,
Os guizos d’oiro ou de opala,
Que à asa da estrofe o artista
Sublime prende ao largá-la.P’ra lapidar à vontade
Um belo verso radiante,
Falta-me a tenacidade,
Que é como o pó do diamante.A musa foi-se-me embora;
Para onde foi nem me lembro;
Só a torno a ver agora
Lá para os fins de Setembro.Anda talvez nas florestas
Fazendo orgias pagãs,
Entre os aromas das giestas
E os braços dos Egipãs.Deixá-la andar lá dois meses
Colhendo imagens e flores,
Paixão
Supõe que de uma praia, rocha ou monte,
Com essa vista embaciada e turva
Que dá aos olhos entranhável dor,
Tinhas podido ver transpor a curva
Pouco a pouco do líquido horizonte
A barca saudosa que levasse
Aquele a quem primeiro uniste a face
E o teu primeiro amor!Depois, que toda mágoa e saudade,
Da mesma rocha ou alcantil deserto,
Olhando avidamente para o mar…
Vias na solitária imensidade
Vagas ficções de um pensamento incerto
Surgir das ondas, desfazer-se em espuma,
Não alvejando nunca vela alguma…
E sempre a suspirar!Até que à luz de uma intuição sublime
De alma arrancavas o gemido extremo
De saudade, desespero e dor!…
Pois é assim que eu sofro, assim que eu gemo,
Que nuvem negra o coração me oprime,
Nuvem de mágoa, nuvem de ciúme,
Em te não vendo à hora do costume…
Meu anjo e meu amor!
Desafogo
Onde estás, oh Filósofo indefesso
Pio sequaz da rígida Virtude,
Tão terna a alheios, quanto a si severa?
Com que mágoa, com que ira olharas hoje
Desprezada dos homens, e esquecida
Aquela ânsia, que em nós pousou Natura
No âmago do peito, — de acudir-nos
Co’as forças, c’o talento, co’as riquezas
À pena, ao desamparo do homem justo!
Que (baldão da fortuna iníqua) os Deuses
Puseram para símbolo do esforço,
Lutando a braços c’o áspero infortúnio?
Pedra de toque em que luzisse o ouro
De sua alma viril, onde encravassem
Seus farpões mais agudos as Desgraças,
E os peitos de virtude generosa
Desferissem poderes de árduo auxílio?
Que nunca os homens são mais sobre-humanos
Mais comparados c’os sublimes Numes,
Que quando acodem com socorro activo,
Não manchado de sórdido interesse,
Nem do fumo de frívola ufania;
Ou cheios de valor e de constância
Arrostam co’a medonha catadura
Da Desgraça, que apura iradas mágoas
Na casa nua do varão honesto.
Mas Grécia e Roma há muito que acabaram;
E as cinzas dos Heróis fortes e humanos,
Viver!
Viver!… E o que é a Vida?…
– Atento, escuto
A primitiva e alta profecia…
E a escutá-la, a sonhar, vou resoluto,
Por caminhos de Amor, com alegria!
E vivo! E na minh’alma, a uma a uma,
Como num quebra mar de encantamentos,
Sinto as ondas bater, – ondas de espuma,
…Evocações, memorias, sentimentos…Amo! – No meu Amor vivo a infinita,
A suprema Beleza, – sou amado!…
E, pelo Sol que no meu peito habita,
Luto! Sinto o Futuro à nossa espera,
Vivo, na minha luta, o meu Amor!…
E sinto bem que a eterna Primavéra
A alcançaremos só por nossa Dor!
Sôfro! E no meu sofrer, nesta anciedade
Com que os meus olhos fitam o nascente,
Em devoção, em pranto, em claridade,
– Sonha o meu coração de combatente…Sofrer, lutar, amar – , vida completa,
Piedosa, humilde e só de Amor ungida –
– Meu coração de amante e de Poeta
– Sente em si mesmo o coração da Vida!…
Sonho exaltado e puro, Amor tão grande,
Que me domina todo e me levanta
Às regiões em que o sentir se expande,
Os Semeadores
Vós os que hoje colheis, por esses campos largos,
O doce fruto e a flor,
Acaso esquecereis os ásperos e amargos
Tempos do semeador?Rude era o chão; agreste e longo aquele dia;
Contudo, esses heróis
Souberam resistir na afanosa porfia
Aos temporais e aos sóis.Poucos; mas a vontade os poucos multiplica,
E a fé, e as orações
Fizeram transformar a terra pobre em rica
E os centos em milhões.Nem somente o labor, mas o perigo, a fome,
O frio, a descalcês,
O morrer cada dia uma morte sem nome,
O morrê-la, talvez,Entre bárbaras mãos, como se fora crime,
Como se fora réu
Quem lhe ensinara aquela ação pura e sublime
De as levantar ao céu!Ó Paulos do sertão! Que dia e que batalha!
Venceste-a; e podeis
Entre as dobras dormir da secular mortalha;
Vivereis, vivereis!
A Alvorada do Amor
Um horror grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:“Chega-te a mim! entra no meu amor,
E à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!Vê! tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação…
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu…Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Sonhos Meus
Sonhos meus, suaves sonhos,
Sois melhores do que a verdade;
Quando sonho sou ditosa,
Sem o ser na realidade.Amor, tu vens nos meus sonhos
Acalmar-me o coração;
Mas cruel! Quanto prometes
Não passa de uma ilusão.Sonhei, tirano, esta noite,
Sonhei que tu me chamavas,
E que sobre a relva branda
Tu mesmo me acalentavas.Disseste-me: “Dorme, Alcipe,
Amor sobre ti vigia,
Mal podes temer os fados.”Dormi: neste dobre sono
Me achei n’um palacio d’ouro:
Entregaram-me uma chave
Para que abrisse um tesouro.– “Chave mágica, sublime,
Que me vais tu descobrir?
Se é menos do que eu desejo
Será melhor não abrir…”– “Abre, Alcipe” qual trovão
Brada o deus que me vigia:
Acordei sobressaltada,
E abriu-se, mas foi o dia.
Hino à Solidão
Diz-se que a solidão torna a vida um deserto;
Mas quem sabe viver com a sua alma nunca
Se encontra só; a Alma é um mundo, um mundo
[aberto
Cujo átrio, a nossos pés, de pétalas se junca.Mundo vasto que mil existências povoam:
Imagens, concepções, formas do sentimento,
— Sonhos puros que nele em beleza revoam
E ficam a brilhar, sóis do seu firmamento.Dia a dia, hora a hora, o Pensamento lavra
Esse fecundo chão onde se esconde e medra
A semente que vai germinar na Palavra,
Cantar no Som, flores na Cor, sorrir na Pedra!Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ela, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da Vida.Sei que embora essa luz nem para todos tenha
O mesmo brilho, o mesmo impulso criador,
Da Glória, sempre vã, todo o asceta desdenha,
Vivendo como um deus no seu mundo interior.E que mundo sublime, esse em que ele se agita!
Mundo que de si mesmo e em si mesmo criou,
Em Viagem
Ia o vapôr singrando velozmente
O verde mar antígo e caprixoso,
Á rude voz do capitão Contente, –
Um rubro homem do mar silencioso.Demandava a Madeira, – a ilha bella,
A patria excelsa e celebre do vinho,
A viagem foi curta; e no caminho
Intentei relações com Arabella.Arabella era a lyrica ingleza,
Loura, pallida e fragil como um vime,
Que traz sempre a sua alma meiga presa
D’algum amor profundo, mas sublime.O londrino, o Antony d’esses amores,
Era um rubro e excentrico burguez,
Mais amigo do bife que das flores,
– A extravagancia de chapeu inglez,Seu olhar dubio, incerto e traiçoeiro
Tinha visões de sangue derramado
Em toda a parte; ao todo um ex-banqueiro,
– Um calvo, velho amigo do Peccado!Nunca o olhar fitava em sitio certo; –
Vogava ás vezes só no tombadilho,
Com um comprido e merencorio filho,
E ninguem viu-lhe um riso franco e aberto.Punha, ás vezes, no mar o olhar sombrio;
E ao vento, a fita branca do chapeu
Dir-se-hia a vella triste d’um navio
De naufragos,