Cantata de Dido
Já no roxo oriente branqueando,
As prenhes velas da troiana frota
Entre as vagas azuis do mar dourado
Sobre as asas dos ventos se escondiam.
A misérrima Dido,
Pelos paços reais vaga ululando,
C’os turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneias.
Só ermas ruas, só desertas praças
A recente Cartago lhe apresenta;
Com medonho fragor, na praia nua
Fremem de noite as solitárias ondas;
E nas douradas grimpas
Das cúpulas soberbas
Piam nocturnas, agoureiras aves.
Do marmóreo sepulcro
Atónita imagina
Que mil vezes ouviu as frias cinzas
De defunto Siqueu, com débeis vozes,
Suspirando, chamar: – Elisa! Elisa!
D’Orco aos tremendos numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu esmorecida
Em torno dos turícremos altares,
Negra escuma ferver nas ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue converter-se.
Frenética, delira,
Pálido o rosto lindo
A madeixa subtil desentrançada;
Já com trémulo pé entra sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu, enternecida,
Magoados suspiros, brandas queixas.
Ali as cruéis Parcas lhe mostraram
As ilíacas roupas que,
Poemas sobre Tristes
243 resultadosSou um guardador de rebanhos
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei da verdade e sou feliz.
Madrigal Excentrico
Tu que não temes a Morte,
Nem a sombra dos cyprestes,
Escuta, Lyrio do Norte,
Os meus canticos agrestes:……………………………………
……………………………………
……………………………………
……………………………………Tu ignoras os desgostos
D’um coração torturado,
Mais tristes do que os soes postos,
Ou de que um bobo espancado!Eu bem sei, ó Musa louca
Que não conheces a magoa…
E tens um riso na boca
Como um cravo aberto n’agua…Eu bem sei… bem sei que ris
Dos meus madrigaes modernos.
Sem cuidar, ó flor de liz!
Que hão de chegar-te os invernos!Que nos corre a Mocidade,
Qual folha verde do val,
E ha de vir-te a tempestade,
Ó branco lyrio real!Que has de ser como a açucena
Varrida pelo nordeste…
E os prantos da minha pena
Que hão de regar teu cypreste!Que ha de a terra agreste e dura
Servir-te de ultimo leito…
E a pedra da sepultura
Quebrar teu corpo perfeito!E has de, emfim, ser devorada
Na fria noute,
A Despedida da Morte
Falo de mim porque bem sei que a vida
lava o meu rosto com o suor dos outros,
que também sou, pois sou tudo o que postoao meu redor se cala, e é pedra, ou, água,
cicia apenas — O teu tempo é a trava
que te impede de ter a calma clarado chão de lajes que o sol recobre,
este esperar por tudo que não corre,
nem pára e nem se apressa, e é só estado,e nem sequer murmura: — O que te trazem
é o riso e o lamento, o ser amado
e o roçar cada dia a tua morte,que não repõe em ti o, sem passado,
ficar no teu escuro, pois herdaste
e legas um sussurro, um som de passos,uma sombra, um olhar sobre a paisagem,
memória, cálcio, húmus, eis que o mundo
nada rejeita, sendo pobre e triste
no esplendor que nos dá. A madrugada.
A Vida
Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d’Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n’um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!Ó Quarta-feira de Trevas!
Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que allumiaes os prezos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outomnaes, cheios de Graça!
Olhos accezos como altares de novena!
Olhos de genio, aonde o Bardo molha a penna!
Ó carvões que accendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas…
Ó pharolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pyrilampos a allumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Uncção final dos que se vão da Terra!
Ó janellas de treva, abertas no teu rosto!
Thuribulos de luar! Luas-cheias d’Agosto!
Luas d’Estio! Luas negras de velludo!
Ó luas negras,
Opiário
Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro
É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
Por estes Campos sem Fim
Por estes campos sem fim,
onde a vista assim se estende,
que verei, triste de mim,
pois ver-vos se me defende?Todos estes campos cheios
são de saudade e pesar,
que vem para me matar,
debaixo de céus alheios.
Em terra estranha e em ar,
mal sem meio e mal sem fim,
dor que ninguém não entende,
até quão longe se estende
o vosso poder em mim!
O Sapo
Não há jardineiro assim,
Não há hortelão melhor
Para uma horta ou jardim,
Para os tratar com amor.É o guarda das flores belas,
da horta mais do pomar;
e enquanto brilham estrelas,
lá anda ele a rondar…Que faz ele? Anda a caçar
os bichos destruidores
que adoecem o pomar
e fazem tristes as flores.Por isso, ficam zangadas
as flores, se se faz mal
a quem as traz tão guardadas
com o seu cuidado leal.E ele guarda as flores belas,
a horta mais o pomar;
brilham no céu as estrelas,
e ele ronda, a trabalhar…E ao pobre sapo, que é cheio
de amor pela terra amiga,
dizem-lhe que é feio
e há quem o mate e persigaMas as flores ficam zangadas,
choram, e dizem por fim:
– «Então ele traz-nos guardadas,
e depois pagam-lhe assim?»E vendo, à noite, passar
o sapo cheio de medo,
as flores, para o consolar,
chamam-lhe lindo, em segredo…
Tenho uma Grande Constipação
Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.Excusez un peu… Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.
Campainhada
As duas ou três vezes que me abriram
A porta do salão onde está gente,
Eu entrei, triste de mim, contente –
E à entrada sempre me sorriram…
A Senhora de Brabante
Tem um leque de plumas gloriosas,
na sua mão macia e cintilante,
de anéis de pedras finas preciosas
a Senhora Duquesa de Brabante.Numa cadeira de espaldar dourado,
Escuta os galanteios dos barões.
— É noite: e, sob o azul morno e calado,
concebem os jasmins e os corações.Recorda o senhor Bispo acções passadas.
Falam damas de jóias e cetins.
Tratam barões de festas e caçadas
à moda goda: — aos toques dos clarins!Mas a Duquesa é triste. — Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
— Ao luar, sobre os tanques chora a água…
— Cantando, os rouxinóis lembram o céu…Dizem as lendas que Satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo, e lindo,
tirar de uma viola estranhas mágoas,
pelas noites que os cravos vêm abrindo…Dizem mais que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes…
Lisboa
De certo, capital alguma n’este mundo
Tem mais alegre sol e o ceu mais cavo e fundo,
Mais collinas azues, rio d’aguas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pallidas creanças,
Mais graves cathedraes – e ruas, onde a esteira
Seja em tardes d’estio a flor de larangeira!A Cidade é formosa e esbelta de manhã! –
É mais alegre então, mais limpida, mais sã;
Com certo ar virginal ostenta suas graças,
Ha vida, confusão, murmurios pelas praças;
– E, ás vezes, em roupão, uma violeta bella
Vem regar o craveiro e assoma na janella.A Cidade é beata – e, ás lucidas estrellas,
O Vicio á noute sae ás ruas e ás viellas,
Sorrindo a perseguir burguezes e estrangeiros;
E á triste e dubia luz dos baços candieiros,
– Em bairos sepulchraes, onde se dão facadas –
Corre ás vezes o sangue e o vinho nas calçadas!As mulheres são vãs; mas altas e morenas,
D’olhos cheios de luz, nervosas e serenas,
Ebrias de devoções, relendo as suas Horas;
– Outras fortes, crueis, os olhos côr d’amoras,
Tu, Vã Filosofia
Tu, vã Filosofia, embora aviltes
Os crentes nas visões do pensamento,
Turvo clarão de raciocínios tristes
Por entre sombras nos conduz, e a mente,
Rastejando a verdade, a desencanta;
Nem doloroso espírito se ilude,
Se o que, dormindo, creu, crê, despertando.
Até no afortunado a vida é sonho
(Sonho, que lá no fim se verifica),
E ansioso pesadelo em mim, que a choro,
Em mim, que provo o fel da desventura,
Desde que levantei, que abri, carpindo,
Os olhos infantis à luz primeira;
Em mim, que fui, que sou de Amor o escravo,
E a vítima serei, e o desengano
Da suprema paixão, por ti cantada
Em versos imortais, como o princípio
Etéreo, criador, de que emanaram.
A Portugal
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
Minha Mãe que não Tenho
Minha mãe que não tenho meu lençol
de linho de carinho de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que eu não oiço ai mãe ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.De que Egipto vieste? De que Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.Minha mãe que não tenho minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila virgem buda corça
ou apenas um mundo em que não entro?Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
constrói a casa a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.
Das Pessoas que Atingem Posições Elevadas
Das pessoas que atingem posições elevadas,
cerimónias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —
de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)
está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tacteando no escuro.
Trova do vento que passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidão.Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Mestre
Mestre, meu mestre querido,
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos.
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva…Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionalista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escrevo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
O Outro
Vão para ti, amor de algum dia,
os gritos rubros da minha alma em sangue;
vives cm mim, corres-me nas veias,
andas a vibrar
na minha carne exangue!Mas, quando nos teus olhos poisa o meu olhar
enoitado e triste,
vejo-te diferente…
Aquele que tu eras, e que eu amo ainda,
perdeu-se de ti
…e só em mim existe!
O Pajem
Sozinho de brancura, eu vago – Asa
De rendas que entre cardos só flutua…
– Triste de Mim, que vim de Alma prà rua,
E nunca a poderei deixar em casa…