Sonambulismo
Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
Mas a nós que nos importa
ser manhã, meio dia ou noite?!…
Sonâmbula a vida decorre
– nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
– mas tudo é tão longe…
Passam homens por homens e não se conhecem:
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
– sonambulismo apenas.Acorda!
Ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!Acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente
Poemas sobre Vazio
107 resultadosEntre o Luar e a Folhagem
Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.Segue-o meu ser em liberdade.
Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.
Sete Haicais – um Poema
Este vale canta
– um pássaro fez morada
em sua garganta.O inverno me achou
lavrando a terra. Havia paz
no canto das pás.Botas de soldado
frente ao mar. – Vindes matar
até as gaivotas?Partes para a guerra.
Sim, nada digas. Ouçamos
o rio de formigas.A ideia da morte
vem-me ao colo e pede afagos
como um gato (abstracto).Ah! amigo, amigo
– além da morte, que posso
repartir contigo?Porque tudo já
foi dito, destravo a língua
no vazio, aos gritos!
Cenário de Natal Sem o Natal
Nenhuma estrela luz, com mais brilho no céu.
Não oiço rumor d’asa ou de vagido
É meia-noite já. E ainda não nasceu.
O que terá acontecido?Eu, para aqui ajoelhado,
A memória da infância a pedir-me alegria,
Todo o presépio armado
… E a mangedoira vazia!O silêncio apavora:
Nem uma loa, nem o som de um sino.
Porquê tanta demora?
Não mais irá nascer o meu menino?Nenhum sinal de sobrenatural
No cenário onde a fé não sublima nem arde.
Por isso, o meu Natal
Vai chegar tarde.(Para sempre tarde?)
O Amor Eterno
E agora que as mãos da incrédula
rapariga te empurram para a saída,
onde irá chover, de acordo com
a cor do céu, não resistas. Na rua,
onde os ventos se cruzam na esquina,
os que sopram, do norte, de colinas
manchadas pelo inverno, e os que
nascem do rio, trazendo a impressão
húmida do litoral, acende um cigarro,
para que o calor do lume te reconforte
as mãos, avança pelo passeio, enquanto
o frio te deixar, e ouve o canto da água
por baixo de terra: correntes
no limite entre o gelo
e o fogo, uma evaporação de humores,
como se as almas lutassem em busca de
saída, e, no fumo de uma memória
de mesa antiga, tu e essa que amaste,
trocando as frases matinais do re-
encontro. Vidros embaciados pelas
lágrimas da ruptura, perguntas sem
resposta, a casa de luzes
apagadas, como se estivesse vazia – e como
se não soubesses que os destinos se decidem
por cima de nós, onde em cada instante
um deus cansado nos desfaz as inúteis
promessas de eternidade.
A Morte o Amor a Vida
Julguei que podia quebrar a profundeza a
[imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangueQueria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro
[nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anulaTu vieste o fogo então reanimou-se
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de
[estrelas
E a terra cobriu-se
Da tua carne clara e eu senti-me leve
Vieste a solidão fora vencida
Eu tinha um guia na terra
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido
Avançava ganhava espaço e tempo
Caminhava para ti dirigia-me incessantemente
[para a luz
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava
[as suas velas
O sono transbordava de sonhos e a noite
Prometia à aurora olhares confiantes
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos
O repouso deslumbrado substituía a fadiga
E eu adorava o amor como nos meus primeiros
[temposOs campos estão lavrados as fábricas irradiam
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas
Nada é simples nem singular
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noiteA floresta dá segurança às árvores
E as paredes das casas têm uma pele comum
E as estradas cruzam-se sempre
Os homens nasceram para se entenderem
Para se compreenderem para se amarem
Têm filhos que se tornarão pais dos homens
Têm filhos sem eira nem beira
Que hão-de reinventar o fogo
Que hão-de reinventar os homens
E a natureza e a sua pátria
A de todos os homens
A de todos os tempos.
Trova do vento que passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidão.Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Que amor não me engana
Que amor não me engana
Com a sua brandura
Se de antiga chama
Mal vive a amarguraDuma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor não se entrega
Na noite vaziaE as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu gritoMuito à flor das águas
Noite marinheira
Vem devagarinho
Para a minha beiraEm novas coutadas
Junto de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela PrimaveraAssim tu souberas
Irmã cotovia
Dizer-me se esperas
O nascer do dia
Condição para Aceitar
Que a morte me lembre
um mar transparente,
só assim a aceito:
silêncio final
dentro de meu peito,
perfeição de vagas
brancas e caladas,
paisagem abolida
no horizonte raso
do mar sem coqueiros,
vazio do mundo
após a palavra
que quis dizer tudo
e não disse nada.
Dia
De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.E flutuo, já sem mim, pura existência.
Tradução de Luis Pignatelli
Trova do Vento que Passa
Para António Portugal
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidão.Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.Vi meu poema na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Libera Me
Livrai-me, Senhor,
De tudo o que for
Vazio de amor.Que nunca me espere
Quem bem me não quer
(Homem ou mulher).Livrai-me também
De quem me detém
E graça não tem,E mais de quem não
Possui nem um grão
De imaginação.
Vimos do Tempo da Falta Mínima
Vimos do tempo da falta mínima
da casa construindo as folhas de quadrícula
(quando um traço mais que expressivo preenche
o vazio de uma folha)
nem beleza nem fim
nem número ordenador como fantasma.Todas as memórias partilhámos
a ruína compreende tudo.
Compreender quer dizer abraçar
(linhas e cruzamentos na procura da folha)
o mundo inteiro nos é dado.Mais tarde (mais além
dois furos a passagem para o útil)
as dunas darão lugar a campos cultivados?
Quero dizer
não rejeito do movimento toda a impaciência
toda a dissolução.
(pouco a pouco) Até onde podemos ir?
O Tempo Seca o Amor
O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.
Pai, a Minha Sombra és Tu
a cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá formae não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedidao sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua facepai, digo-te
a minha sombra és tu
Mãe
I
Dantes, quando a deixava,
As férias já no fim,
Ela vinha à janela
Despedir-se de mim.Depois, quando na estrada,
Olhava para trás,
Deitava-me ainda a benção
Para que eu fosse em paz.Dali não se movia,
À vidraça encostada,
Até que eu me perdia
Já na curva da estrada.Hoje, se olho, calo-me
E baixo os olhos meus!
Já não vem à janela
Para dizer-me adeus!II
Chove, e a chuva é fria.
Noite! Nos montes distantes
O Inverno principia.
Um Inverno como dantes.Ao redor do lume aceso
Todos ficamos a olhar…
Todos não, não somos todos,
Porque há vazio um lugar.Esse lugar era o dela,
Que ninguém mais preencheu.
Mesmo com vida, na terra,
Era uma estrela no céu.
Sombras
A meio desta vida continua a ser
difícil, tão difícil
atravessar o medo, olhar de frente
a cegueira dos rostos debitando
palavras destinadas a morrer
no lume impaciente de outras bocas
anunciando o mel ou o vinho ou
o fel.Calmamente sentado num sofá,
começas a entender, de vez em quando,
os condenados a prisão perpétua
entre as quatro paredes do espírito
e um esquife negro onde vão desfilando
imagens, só imagens
de canal em canal, sintonizadas
com toda a angústia e estupidez do mundo.As pessoas – tu sabes – as pessoas são feitas
de vento
e deixam-se arrastar pela mais bela
respiração das sombras,
pela morte que repete os mesmos gestos
quando o crepúsculo fica a sós connosco
e a noite se redime com uma estrela
a prometer salvar-nos.A meio desta vida os versos abrem
paisagens virtuais onde se perdem
as intenções que alguma vez tivemos,
o recorte obscuro de perfis
desenhados a fogo há muitos anos
numa alma forrada de espelhos
mas sempre tão vazia,
Explicação da Ausência
Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.
Mudançar
Repor
na planta da cor brancura
em pedra solicitadaReler
por vacilação das sílabas
em escuridão afundadaRever
por olho areado com águas
a imagem contaminadaReter
no músculo oxigenado vaso
areal terra aterradaResistir
ao cântico suado no temor
a evolução revoltadaReaver
do padre eterno esquecido
fé febril equivocadaRematar
pontilhados no voo manual
asa de vazio blindadaReacordar
quando o tempo do morto é
vício pele recicladaRecomeçar
linguajar contínua marcha
vivente reinventada.
Carpe diem
Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? “Não”, dizes, “nada me obrigará
à renúncia de mim próprio – nem esse olhar
que me oforece o leito profundo da sua imagem!”
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.