Cinismos
Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.Hei de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!E eu hei de, então, soltar uma risada.
Poemas sobre Velhos
187 resultadosObsessão do Mar Oceano
Vou andando feliz pelas ruas sem nome…
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano…
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas… e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral…
Búzios calçando portas… caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos…
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su’alma perdida e vaga na neblina…
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos…
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas…
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.
Véspera
Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquitecto.Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos,
Um Adeus Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificadaNão tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dorNão podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viverNão podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igualNão podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetalNão tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de serNão tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Senta-te aí
Está na hora de ouvires o teu pai
Puxa para ti essa cadeira
Cada qual é que escolhe aonde vai
Hora-a-hora e durante a vida inteiraPodes ter uma luta que é só tua
Ou então ir e vir com as marés
Se perderes a direcção da Lua
Olha a sombra que tens colada aos pésEstou cansado. Aceita o testemunho
Não tenho o teu caminho pra escrever
Tens de ser tu, com o teu próprio punho
Era isto o que te queria dizerSou uma metade do que era
Com mais outro tanto de cidade
Vou-me embora que o coração não espera
À procura da mais velha metade
Os Cavalleiros
– Onde vaes tu, cavalleiro,
Pela noite sem luar?
Diz o vento viajeiro,
Ao lado d’elle a ventar…
Não responde o cavalleiro,
Que vae absorto a scismar.
– Onde vaes tu, torna o vento,
N’esse doido galopar?
Vaes bater a algum convento?
Eu ensino-te a rezar.
E a lua surge, um momento,
A lua, convento do Ar.
– Vaes levar uma mensagem?
Dá-m’a que eu vou-t’a entregar:
Irás em meia viagem
E eu já de volta hei-de estar.
E o cavalleiro, á passagem,
Faz as arvores vergar.
– Vaes escalar um mosteiro?
Eu ajudo-t’o a escalar:
Não ha no mundo pedreiro
Que a mim se possa egualar!
Não responde o cavalleiro
E o vento torna a fallar:
– Dize, dize! vaes p’ra guerra?
Monta em mim, vou-te levar:
Não ha cavallo na Terra
Que tenha tão bom andar…
E os trovões rolam na serra
Como vagas a arrolar!
– E as guerras has-de ganhal-as,
Que por ti hei-de velar:
Ponho-me á frente das balas
Para a força lhes tirar!
Já Estou a Ficar Velho
Já estou a ficar velho, ainda que tenha
esta figura fixa sem idade,
e me mantenha em forma o aparelho
a que todos aqui somos sujeitos:
a correria cega, a suspensão elástica,
o salto em trave e trampolim de folhas,
e outras altas artes de ginástica.
Mas eu bem sei sentir além da aparência,
e já me aconteceu, ao visitar o canto
onde o mundo se acaba em chão de areia,
ali ver o meu fim anunciado.
Quando em tranquilo pouso assim medito,
peso, e calculo tudo aquilo
que não fiz, e não tive, e não alcanço
com o rosto extravagante que me deram,
já tudo bem pensado considero
se não devo encontrar algum consolo
na ciência que conduz o feiticeiro,
e acreditar também, como me diz,
que é, esta vida, emaranhada teia
de mal fiado, mal dobado fio,
e a morte tão somente um singular casulo
de onde sairei transfigurado.
Mas não sei de que valha imaginar
um outro ser incólume e perfeito
que da minha substância seja feito
e tome, noutro mundo,
Um Segredo
Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em
[nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
[tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreitaestreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos,
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto sóSou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela músicaSão as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
Ah Deixem-me Dormir!
O Poeta
Olá, bom velho! é aqui o Hotel da Cova,
Tens algum quarto ainda para alugar?
Simples que seja, basta-me uma alcova…
(Como eu estou molhado! é de chorar…)
O povoO luar averte as orvalhadas sobre a rua!
Jezus! que lindo…Vamos! depressa! Vem, faze-me a cama,
Que eu tenho somno, quero-me deitar!
Ó velha Morte, minha outra ama!
Para eu dormir, vem dar-me de mamar…
A Sra JuliaSão as Janeiras da Lua!
O CoveiroOs quartos, meu senhor, estão tomados
Mas se quizer na valla (que é de graça…)
Dormem, alli, somente os desgraçados:
Têm bom dormir… bom sitio… ninguem passa…
O Zé dos LodosA lua é a nossa vacca, ó Maria!
Mugindo…Ainda lá, hontem, hospedei um moço
E não se queixa… E ha-de poupal-o a traça,
Porque esses hospedes só trazem osso,
E a carne em si, valha a verdade, é escassa.
O Dr. DelegadoA noite parece dia!
O PoetaEscassa, sim! mas tenho ossada ainda,
O Mundo Velho
Nas crises d’este tempo desgraçado,
Quando nos pomos tristes a espalhar
Os olhos pela historia do passado…
Quem não verá, contente ou consternado,
– Mundo velho que estás a desabar – ?!…Sim tu estás a morrer, vil socio antigo…
E Pae de nossos vicios e paixões!
Camarada dos crimes, torpe amigo…
– Morre, emfim, correrá no teu jazigo,
Em vez de vinho, o sangue das nações!Deves morrer, provecto criminoso!
Tens vivido de mais, vil sensual!
Tu estás velho, cansado e desgostoso,
E, como um velho principe gotoso,
Ris, cruelmente, ás sensações do mal.– Que é feito do teu Deus, do teu Direito?
– Onde estão as visões dos teus prophetas?
– Quem te deu esse orgulho satisfeito?
Muribundo Caiphaz, junto ao teu leito,
Morrem, debalde, os gritos dos poetas!No tempo em que eras forte, foi teu braço
Que apunhalou os grandes ideaes!…
Hoje estás gordo, sensural, devasso,
E andas, torpe a rir, como um palhaço,
N’um circulo lusente de punhaes.Tu tens vendido os justos no mercado!
Toma lá Cinco!
Encolhes os ombros, mas o tempo passa…
Ai, afinal, rapaz, o tempo passa!Um dente que estava são e agora não,
Um cabelo que ainda ontem preto era,
Dentro do peito um outro, sempre mais velho coração.
E na cara uma ruga que não espera, que não espera…No andar de cima, uma nova criança
Vai bater no teu crânio os pequeninos pés.
Mas deixa lá, rapaz, tem esperança:
Este ano talvez venhas a ser o que não és…Talvez sejas de enredos fácil presa,
Eterno marido, amante de um só dia…
Com clorofila ficam os teus dentes que é uma beleza!
Mas não rias, rapaz, que o ano só agora principia…Talvez lances de amor um foguetão sincero
Para algum coração a milhões de anos-dor
Ou desesperado te resolvas por um mero
Tiro na boca, mas de alcance maior…Grande asneira, rapaz, grande asneira seria
Errar a vida e não errar a pontaria…Talvez te deixes por uma vez de fitas,
De versos de mau hálito e mau sestro,
E acalmes nas feias o ardor pelas bonitas
(Como mulheres são mais fiéis,
Carta a Manoel
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,
O Silêncio
Peço apenas o teu silêncio,
como uma criança pede uma flor
ou um velho pedinte um bocado de pão.
Um silêncio
onde a tua alma se embrulha, friorenta,
trémula, à aproximação das invernias.
Um silêncio com ressonâncias de antigas primaveras,
de outonos descoloridos
e da chuva a cair no negrume da noite.– Vá, motorista de táxi,
transporta-me
através das ruas da cidade inextricável,
vertiginosamente,
buzinando, buzinando,
abafando o ruído de um outro silêncio!
O Luar quando Bate na Relva
O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra…
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas …
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
Portugal
Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor,
O Esplendor
E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!
Marília de Dirceu
(excerto)
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela, graças à minha estrela!Eu vi o meu semblante numa fonte:
dos anos inda não está cortado;
os pastores que habitam este monte
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste,
nem canto letra que não seja minha.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!Mas tendo tantos dotes da ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que o teu afeto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
E bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte e prado;
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Poema para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.