Rosto Afogado
Para sempre um luar de naufrágio
anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte Ă© este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silĂŞncio
atravessada na garganta.Não sei se te procuro ou se me esqueço
de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar de uma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidĂŁo bebida pelos bares,
nas mĂŁos levemente adolescentes
poisadas na indolĂŞncia dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra em sombra, nas ruas da cidade?
Poemas sobre Verdade de Eugénio de Andrade
2 resultadosAdeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou nĂŁo chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inĂşteis.Meto as mĂŁos nas algibeiras e nĂŁo encontro nada.
Antigamente tĂnhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.Ă€s vezes tu dizias: os teus olhos sĂŁo peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possĂveis.Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje sĂŁo apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.