Sonho
Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Num poço ou num cristal me debrucei.
Só no teu rosto a morte me alcançava.De quem a morte, por terror de mim?
De quem o infinito que faltava?
Numa casa de vidro vi meu fim.
Numa casa de vidro me esperavas.Numa casa de vidro as persianas
desciam lentamente e em seu lugar
a noite abria o escuro das entranhas
e o teu rosto morria devagar.Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Fiz do teu corpo sonho e nĂŁo olhei
nas palavras a morte que guardavas.Descemos devagar as persianas,
deixámos que o amor nos corroesse
o Ăntimo da casa e as estranhas
cerimĂłnias do dia que adoece.Numa casa de vidro. Num espelho.
Na memĂłria, por vezes amargura,
por vezes riso falso de tĂŁo velho,
cantar da sombra sobre a selva escura.Numa casa de vidro te sonhei.
No vazio dessa casa me esperavas.
Poemas sobre Vez de LuĂs Filipe Castro Mendes
4 resultadosDe Amor
Considera o amor como um retoque num quadro antigo
que subitamente o vem iluminar:
vimo-nos muitas vezes antes de seres no meu olhar
aquela luz em um paĂs perdido
que tu quiseste em vĂŁo esconder, negar.O quadro manteve o mesmo fulgor:
a reverberação no silêncio da perda,
o desamor.Quem avivou o brilho das tintas, quem corrigiu o baço
sinal da morte? Falámos de uma dor
num fundo esbatido. Falámos do grito mudo do teu corpo.
Falámos de amor.
Do Medo
1
NĂŁo pode o poema
circunscrever o medo,
dar-lhe o rosto glorioso
de uma fábula
ou crer intensamente na sua aura.
NĂłs permanecemos, quando
escurece Ă nossa volta o frio
do esquecimento
e dura o vento e uma nuvem leve
a separar-se das brumas
nos começa a noite.Não pode o poema
quase nada. A alguns inspira
uma discreta repugnância.
Outras vezes inclinamo-nos, reverentes, ante os epitáfios
ou demoramo-nos a escutar as grandes chuvas
sobre a terra.
Quem reconhece a poesia, esse frio
intermitente, essa
persistência através da corrupção?
Quase sempre a angĂşstia
instaura a luz por dentro das palavras
e lhes rouba os sentidos.
Quase sempre Ă© o medo
que nos conduz Ă poesia.2
Voltando ao medo: as asas
prendem mais do que libertam;
os pássaros percorrem necessariamente
os mesmos caminhos no espaço,
sem possibilidades de variação
que nĂŁo estejam certas com esse mesmo voo
que sempre descrevem.
Voltando ao medo: o poemadesenha uma elipse em redor da tua voz
e cerca-se de angĂşstia
e ervas bravias — nada mais
pode fazer.
De MemĂłria
Nunca te surpreendeu o sorriso estático
das imagens antigas? Alguma coisa aqui
tivemos de perder. Percorro dias e corpos na memĂłria,
mas o que procuro mais é não te ver.Quem ama quem? As máscaras trocaram-se
e a tua voz ressoa neste palco.
Trouxe versos e mĂşsica para te dar,
mas o rosto que tivemos já partiu;
fiquei eu sĂł, Ă beira da memĂłria,
água do mar que não serve para beber.Porque esta foi a paixão, o grande acto,
a tĂmida paixĂŁo de asas de chumbo.
Eu vi-te muitas vezes frente ao mar,
mas quem de nĂłs para acender a cinza?
– ronda-nos a ave de presa despojada
sobre os malefĂcios. Aliás, coisas passadas.NĂŁo te surpreendeu? O amor
surpreende – nĂŁo convĂ©m, desarruma.
E nunca se ama ao certo quem se ama.
Procuramos apenas um brilho,
um brilho muito intenso no olhar,
um brilho que nĂŁo vamos definir
e que algum dia iremos renegar.