Passagens sobre Poesia

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Conduta e Poesia

Quando o tempo nos vai comendo com o seu relâmpago quotidiano decisivo, as atitudes fundadas, as confianças, a fé cega se precipitam e a elevação do poeta tende a cair como o mais triste nácar cuspido, perguntamo-nos se já chegou a hora de envilecermos. A hora dolorosa de ver como o homem se sustém a puro dente, a puras unhas, a puros interesses. E como entram na casa da poesia os dentes e as unhas e os ramos da feroz árvore do ódio. É o poder da idade, ou proventura, a inércia que faz retroceder as frutas no próprio bordo do coração, ou talvez o «artístico» se apodere do poeta e, em vez do canto salobro que as ondas profundas devem fazer saltar, vemos cada dia o miserável ser humano defendendo o seu miserável tesouro de pessoa preferida?
Aí, o tempo avança com cinza, com ar e com água! A pedra que o lodo e a angústia morderam floresce com prontidão com estrondo de mar, e a pequena rosa regressa ao seu delicado túmulo de corola.
O tempo lava e desenvolve, ordena e continua.
E que fica então das pequenas podridões, das pequenas conspirações do silêncio, dos pequenos frios sujos da hostilidade?

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Há no mundo uma conjura geral e permanente contra duas coisas, a poesia e a liberdade; as pessoas de gosto encarregam-se de exterminar uma, tal como os agentes da ordem de perseguir a outra.

A Invisibilidade é a Condição para a Elegância

Parece-me que a invisibilidade é a condição para a elegância. A elegância acaba se for notada. Sendo a poesia a elegância por excelência, não sabe ser visível. Então, para que serve?, dir-me-eis. Para nada. Quem a vê? Ninguém. O que a não impede de ser um atentado contra o pudor, e apesar de o seu exibicionismo se exercer entre os cegos. Contenta-se em exprimir uma moral particular. Depois, esta moral particular solta-se sob a forma de obra. Exige que a deixem viver a sua vida. Faz-se pretexto para imensos mal-entendidos que se chamam a glória. A glória é absurda por resultar de um ajuntamento. A multidão cerca um acidente, conta-o a si mesma, inventa-o, perturba-o até se transformar noutro. O belo resulta sempre de um acidente. De uma quebra brutal entre hábitos adquiridos e hábitos a adquirir. Derrota, nauseia. Chega a causar horror. Quando o novo hábito for adquirido, o acidente deixará de ser acidente. Far-se-á clássico e perderá a virtude de choque. Por isso uma obra nunca é compreendida. É admitida. Se não me engano, a observação pertence a Eugène Delacroix: «Nunca se é compreendido, é-se admitido». Matisse repete com frequência esta frase.

No Meu País

No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.

Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
– é tão vulgar que nos cansa –
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
– a morte é branda e letal –
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?

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A Mulher dos Vinte Poemas

Perguntam-me sempre quem é a mulher dos «Vinte Poemas». É difícil responder. As duas ou três que se entrelaçam nesta melancólica e ardente poesia correspondem, digamos, a Marisol e Marisombra. Marisol é o idílio da província encantada, com imensas estrelas nocturnas e olhos escuros como o céu molhado de Temuco. É ela que figura, com a sua alegria e a sua vivaz beleza, em quase todas as páginas, rodeada pelas águas do porto e pela meia-lua sobre as montanhas. Marisombra é a estudante da capital. Boina parda, olhos dulcíssimos, o constante aroma a madressilva do errante amor estudantil, o sossego físico dos apaixonados encontros nos esconderijos da urbe.

A palavra quando é criação desnuda. A primeira virtude da poesia tanto para o poeta como para o leitor é a revelação do ser. A consciência das palavras leva à consciência de si: a conhecer-se e a reconhecer-se.

No Corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

Fábrica

Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto liso e frio dos metais,
a segura confiança

do saber-se que é assim e assim exactamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma aventura,
como na cabeça do engenheiro.
Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:

é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento;

como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.

Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;

as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.