Passagens sobre Profundos

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Aquele que se sabe profundo esforça-se por ser claro; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforça-se por ser obscuro. Porque a multidão acredita ser profundo tudo aquilo de que não pode ver o fundo. Tem tanto medo! Gosta tão pouco de se meter na água!

A Morte

Oh! que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem…
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!

Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem…
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.

Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Com os velhos corações tantalizados.

Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da Morte ondeando, uivando…

Carta ao Mar

Deixa escrever-te, verde mar antigo,
Largo Oceano, velho deus limoso,
Coração sempre lyrico, choroso,
E terno visionario, meu amigo!

Das bandas do poente lamentoso
Quando o vermelho sol vae ter comtigo,
– Nada é mais grande, nobre e doloroso,
Do que tu, – vasto e humido jazigo!

Nada é mais triste, tragico e profundo!
Ninguem te vence ou te venceu no mundo!…
Mas tambem, quem te poude consollar?!

Tu és Força, Arte, Amor, por excellencia! –
E, comtudo, ouve-o aqui, em confidencia;
– A Musica é mais triste inda que o Mar!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo… Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a Terra anda curvada!

A inclinação mais natural, mais viva, e que mais fortes e profundas raízes tem lançado na natureza humana é o desejo ou apetite da glória.

A ortografia não é uma pele artificial da expressão verbal, é uma estrutura profunda que se revela na imagem grafada.

Rir!

Rir! Não parece ao século presente
Que o rir traduza, sempre, uma alegria…
Rir! Mas não rir como essa pobre gente
Que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,
Com que André Gil eternamente ria.
Rir! Mas com o rir demolidor e quente
Duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece.
Porque o chorar nos ilumina e nos aquece
Nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste…
Pois que o difícil do rir bem consiste
Só em saber como Henri Heine rir!…

Carregado De Mim Ando No Mundo

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco cos demais, que só, sisudo.

Cântico

Limarás tua esperança
até que a mó se desgaste;
mesmo sem mó, limarás
contra a sorte e o desespero.

Até que tudo te seja
mais doloroso e profundo.
Limarás sem mãos ou braços,
com o coração resoluto.

Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo.

A Corrosão da Exposição Pública

A vida de todas as nascentes profundas decorre com vagar; têm de esperar muito tempo antes de saber o que caiu nas suas profundezas. Tudo o que é grande foge da praça pública e da fama: é longe da praça e da fama que sempre viveram os inventores de novos valores.
Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão! Vejo-te aguilhoado pelas moscas venenosas. Refugia-te onde sopre um vento rijo e forte!
Refugia-te na tua solidão! Viveste muito perto dos pequenos e dos miseráveis. Foge da sua vingança invisível! A teu respeito só têm um sentimento, o rancor.
Não levantes mais a mão contra eles! São inumeráveis; o teu destino não é ser enxota-moscas!
São inumeráveis, esses pequenos, esses miseráveis; e já se viram altivos edifícios reduzidos a escombros pela acção das gotas da chuva e das ervas daninhas.

Conduta e Poesia

Quando o tempo nos vai comendo com o seu relâmpago quotidiano decisivo, as atitudes fundadas, as confianças, a fé cega se precipitam e a elevação do poeta tende a cair como o mais triste nácar cuspido, perguntamo-nos se já chegou a hora de envilecermos. A hora dolorosa de ver como o homem se sustém a puro dente, a puras unhas, a puros interesses. E como entram na casa da poesia os dentes e as unhas e os ramos da feroz árvore do ódio. É o poder da idade, ou proventura, a inércia que faz retroceder as frutas no próprio bordo do coração, ou talvez o «artístico» se apodere do poeta e, em vez do canto salobro que as ondas profundas devem fazer saltar, vemos cada dia o miserável ser humano defendendo o seu miserável tesouro de pessoa preferida?
Aí, o tempo avança com cinza, com ar e com água! A pedra que o lodo e a angústia morderam floresce com prontidão com estrondo de mar, e a pequena rosa regressa ao seu delicado túmulo de corola.
O tempo lava e desenvolve, ordena e continua.
E que fica então das pequenas podridões, das pequenas conspirações do silêncio, dos pequenos frios sujos da hostilidade?

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Adeus, Adeus, Adeus!

Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No badalar monótono dos sinos.
Hermeto Lima

Adeus, adeus, adeus! E, suspirando,
Saí deixando morta a minha amada,
Vinha o luar iluminando a estrada
E eu vinha pela estrada soluçando.

Perto, um ribeiro claro murmurando
Muito baixinho como quem chorava,
Parecia o ribeiro estar chorando
As lágrimas que eu triste gotejava.

Súbito ecoou do sino o som profundo!
Adeus! – eu disse. Para mim no mundo
Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.

Mas no mistério astral da noute bela
Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No marulhar monótono das águas!

Eu penso 99 vezes e não descubro a verdade. Paro de pensar, mergulho em em profundo silêncio, e eis que a verdade me é revelada.

Fundamentalmente, um bom autor tem o seu próprio senso de estilo. Há uma voz natural, profunda, e essa voz está presente desde o primeiro esboço de um manuscrito. Quando ele ou ela desenvolve a partir do manuscrito original, continua a reforçar e simplificar essa voz natural e profunda.

Como Escrever

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta — mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo de água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive.

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Viver no Escuro ou na Sombra

O objecto que amamos parece-nos mais belo do que é, por isso vemos com frequência mulheres feias e mal-feitas serem adoradas e desfrutarem de grandes honras (Lucrécio), e mais feio aquele pelo qual temos aversão. Para um homem contrariado e aflito a claridade do dia parece escurecida e tenebrosa. Os nossos sentidos são não apenas alterados mas amiúde totalmente embrutecidos pelas paixões da alma. Quantas coisas vemos, que não perceberemos se tivermos o nosso espírito ocupado alhures? Mesmo com coisas bem visíveis, reconhecerás que, se não lhes aplicares o espírito, é como se desde sempre elas estivessem ausentes ou muito distantes (Lucrécio). Parece que a alma traz para o interior e transvia os poderes dos sentidos. Dessa maneira, tanto o interior como o exterior do homem são cheios de fraqueza e de mentira.
Os que compararam a nossa vida com um sonho tiveram razão, talvez, mais do que pensavam. Quando sonhamos, a nossa alma vive, age, exerce todas as suas faculdades, nem mais nem menos do que quando está em vigília; porém de modo mais frouxo e obscuro, decerto não tanto que a diferença seja como da noite para uma viva claridade, mas sim como da noite para a sombra: lá ela dorme,

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Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.