Amor E Vida
Esconde-me a alma, no Ăntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.A crua e rija lĂąmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
SĂł findarĂĄ quando findar-me a vida!Ă meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu ĂĄlgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ă meu sacro, Ăł meu Ășnico tesouro!
Ă meu amor! tu morrerĂĄs comigo!
Passagens de Raimundo Correia
24 resultadosĂltimo Porto
Este o paĂs ideal que em sonhos douro;
Aqui o estro das aves me arrebata,
E em flores, cachos e festÔes, desata
A Natureza o virginal tesouro;Aqui, perpétuo dia ardente e louro
Fulgura; e, na torrente e na cascata,
A ĂĄgua alardeia toda a sua prata,
E os laranjais e o sol todo o seu ouro…Aqui, de rosas e de luz tecida,
Leve mortalha envolva estes destroços
Do extinto amor, que inda me pesam tanto;E a terra, a mĂŁe comum, no fim da vida,
Para a nudeza me cobrir dos ossos,
Rasgue alguns palmos do seu verde manto.
A Cavalgada
A lua banha a solitĂĄria estrada…
SilĂȘncio!… mas alĂ©m, confuso e brando,
O som longĂnquo vem se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.São fidalgos que voltam da caçada;
VĂȘm alegres, vĂȘm rindo, vĂȘm cantando,
E as trompas a soar vĂŁo agitando
O remanso da noite embalsamada…E o bosque estala, move-se, estremece…
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se apĂłs no centro da montanha…E o silĂȘncio outra vez soturno desce,
E lĂmpida, sem mĂĄcula, alvacenta
A lua a estrada solitĂĄria banha…
Mal Secreto
Se a cĂłlera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrĂłi cada ilusĂŁo que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;Se se pudesse o espĂrito que chora
Ver através da måscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, entĂŁo piedade nos causasse!Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recĂŽndito inimigo,
Como invisĂvel chaga cancerosa!Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura Ășnica consiste
Em parecer aos outros venturosa!
Banzo
VisĂ”es que na alma o cĂ©u do exĂlio incuba,
Mortais visĂ”es! Fuzila o azul infando…
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O NĂger… Bramem leĂ”es de fulva juba…Uivam chacais… Ressoa a fera tuba
Dos cafres, pelas grotas retumbando,
E a estrelada das ĂĄrvores, que um bando
De paquidermes colossais derruba…Como o guaraz nas rubras penhas dorme,
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto…
Fuma o saibro africano incandescente…Vai com a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobĂĄ… E cresce na alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente…
Saudade
Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito coche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os ouropĂ©is mais finos…Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, bandeiras desfraldadas,
GirĂąndolas, clarins, atropeladas
LegiĂ”es de povo, bimbalhar de sinos…Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreÔes medonhos,
AlguĂ©m se assenta sobre as lĂĄjeas frias;E em torno os olhos Ășmidos, tristonhos,
Espraia, e chora, como Jeremias,
Sobre a JerusalĂ©m de tantos sonhos!…
Nua E Crua
Doire a Poesia a escura realidade
E a mim a encubra! Um visionĂĄrio ardente
Quis vĂȘ-la nua um dia; e, ousadamente,
Do åureo manto despoja a divindade;O estema da perpétua mocidade
Tira-lhe e as galas; e ei-la, de repente,
Inteiramente nua e inteiramente
Crua, como a Verdade! E era a Verdade!Fita-a em seguida, e atĂŽnito recua…
– Ă Musa! exclama entĂŁo, magoado e triste,
Traja de novo a louçainha tua!Veste outra vez as roupas que despiste!
Que olhar se apraz em ver-te assim tĂŁo nua?…
Ă nudez da Verdade quem resiste?!
O Misantropo
A boca, Ă s vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludĂbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo Ă socapa!Porque, desde que esse Ăłdio atroz me veio,
Só traiçÔes vejo em cada olhar venusto?
PerfĂdias sĂł em cada humano seio?Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspĂcuo e melhor, sĂł quando odeio?
E Ă© preciso odiar para ser justo?!
Tristeza De Momo
Pela primeira vez, Ămpias risadas
Susta em pranto o deus da zombaria;
Chora; e vingam-se dele, nesse dia,
Os silvanos e as ninfas ultrajadas;Trovejam bocas mil escancaradas,
Rindo; arrombam-se os diques da alegria;
E estoira descomposta vozeria
Por toda a selva, e apupos e pedradas…Fauno, indigita; a NĂĄiade o caçoa;
SĂĄtiros vis, da mais indigna laia,
Zombam. NĂŁo hĂĄ quem dele se condoa!E Eco propaga a formidĂĄvel vaia,
Que além por fundos boqueirÔes reboa
E, como um largo mar, rola e se espraia…
Chuva E Sol
Agrada Ă vista e Ă fantasia agrada
Ver-te, através do prisma de diamantes
Da chuva, assim ferida e atravessada
Do sol pelos venĂĄbulos radiantes…Vais e molhas-te, embora os pĂ©s levantes:
– Par de pombos, que a ponta delicada
Dos bicos metem nĂĄgua e, doidejantes,
Bebem nos regos cheios da calçada…Vais, e, apesar do guarda-chuva aberto,
Borrifando-te colmam-te as goteiras
De pérolas o manto mal coberto;E estrelas mil cravejam-te, fagueiras,
Estrelas falsas, mas que assim de perto,
Rutilam tanto, como as verdadeiras…
Primeiras VigĂlias
Dos revoltos lençóis sobre o deserto
Despejava-se, em ondas silenciosas,
O luar dessas noites vaporosas,
De seu lĂąnguido cĂĄlix todo aberto.Rangia a cama, e deslizavam, perto
Alvas, femĂneas formas ondulosas;
E eu a idear, nas Ăąnsias amorosas,
Uns ombros nus, um colo descoberto.E a gemer: – “Abeirai-vos de meu leito,
Ă sensuais visĂ”es da adolescĂȘncia,
E inflamai-vos na pira em que me inflamo!Fervem paixÔes despertas no meu peito;
Descai a flor virgĂnea da inocĂȘncia,
E irrompe o fruto dolorido… Eu amo!”
Plena Nudez
Eu amo os gregos tipos de escultura:
PagĂŁs nuas no mĂĄrmore entalhadas;
Não essas produçÔes que a estufa escura
Das modas cria, tortas e enfezadas.Quero um pleno esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as linhas onduladas
Livres: de carne exuberante e pura
Todas as saliĂȘncias destacadas…NĂŁo quero, a VĂȘnus opulenta e bela
De luxuriantes formas, entrevĂȘ-la
De transparente tĂșnica atravĂ©s:Quero vĂȘ-la, sem pejo, sem receios,
Os braços nus, o dorso nu, os seios
Nus… toda nua, da cabeça aos pĂ©s!
MarĂlia
Ă MarĂlia! Ă Dirceu! Eram dois ninhos
Os vossos coraçÔes, ninhos de flores;
Mas, entre os quais, sentĂeis os rigores
Lacerantes de incĂłgnitos espinhos;Tremiam, como em flĂĄcidos arminhos,
Promiscuamente, neles os amores,
As saudades, os cĂąnticos, as dores,
Como uma multidĂŁo de passarinhos…O sulco profundĂssimo que traça
Nos coraçÔes amantes a desgraça,
Ambos nos coraçÔes traçados vistes,Quando os vossos olhares, no momento,
Cruzaram-se, do negro afastamento,
Marejados de lĂĄgrimas e tristes…
Conchita
Adeus aos filtros da mulher bonita;
A esse rosto espanhol, pulcro e moreno;
Ao pĂ© que no bolero… ao pĂ© pequeno;
PĂ© que, alĂgero e cĂ©lere, saltita…Lira do amor, que o amor nĂŁo mais excita,
A um silĂȘncio de morte eu te condeno;
Despede-te; e um adeus, no Ășltimo treno,
Soluça às graças da gentil Conchita:A esses, que em ondas se levantam, seios
Do mais cheiroso jambo; a esses quebrados
Olhos meridionais de ardĂȘncia cheios;A esses lĂĄbios, enfim, de nĂĄcar vivo,
Virgens dos lĂĄbios de outrem, mas corados
Pelos beijos de um sol quente e lascivo.
Desdéns
Realçam no marfim da ventarola
As tuas unhas de coral felinas
Garras com que, a sorrir, tu me assassinas,
Bela e feroz… O sĂąndalo se evolua;O ar cheiroso em redor se desenrola;
Pulsam os seios, arfam as narinas…
Sobre o espaldar de seda o torso inclinas
Numa indolĂȘncia mĂłrbida, espanhola…Como eu sou infeliz! Como Ă© sangrenta
Essa mĂŁo impiedosa que me arranca
A vida aos poucos, nesta morte lenta!Essa mĂŁo de fidalga, fina e branca;
Essa mĂŁo, que me atrai e me afugenta,
Que eu afago, que eu beijo, e que me espanca!
O Vinho De Hebe
Quando do Olimpo nos festins surgia
Hebe risonha, os deuses majestosos
Os copos estendiam-lhe, ruidosos,
E ela, passando, os copos lhes enchia…A Mocidade, assim, na rubra orgia
Da vida, alegre e prĂłdiga de gozos,
Passa por nós, e nós também, sequiosos,
Nossa taça estendemos-lhe, vazia…E o vinho do prazer em nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos e passa…
Passa, e nĂŁo torna atrĂĄs o seu caminho.NĂłs chamamo-la em vĂŁo; em nossos lĂĄbios
Restam apenas tĂmidos ressĂĄbios,
Como recordaçÔes daquele vinho.
Beijos Do CĂ©u
Sonhei-te assim, Ăł minha amante, um dia:
– Vi-te no cĂ©u; e, anamoradamente,
De beijos, a falange resplendente
Dos serafins, teu corpo inteiro ungia…Santos e anjos beijavam-te… Eu bem via
Beijavam todos o teu lĂĄbio ardente;
E, beijando-te, o prĂłprio Onipotente,
O prĂłprio Deus nos braços te cingia!Nisto, o ciĂșme – fera que eu nĂŁo domo –
Despertou-me do sonho, repentino
Vi-te a dormir tĂŁo plĂĄcida a meu lado…E beijei-te tambĂ©m, beijei-te… e, ai! como
Achei doce o teu lĂĄbio purpurino.
Tantas vezes assim no céu beijado!
Anoitecer
Esbraseia o Ocidente na Agonia
O sol… Aves, em bandos destacados,
Por cĂ©us de ouro e de pĂșrpuras raiados,
Fogem… Fecha-se a pĂĄlpebra do dia…Delineiam-se, alĂ©m, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia…Um mundo de vapores no ar flutua…
Como uma informe nĂłdoa, avulta e cresce
A sombra, ĂĄ proporção que a luz recua…A natureza apĂĄtica esmaece…
Pouco a pouco, entre as ĂĄrvores, a lua
Surge trĂȘmula, trĂȘmula… Anoitece.
VĂ©sper
Do seu fastĂgio azul, serena e fria,
Desce a noite outonal, augusta e bela;
VĂ©sper fulgura alĂ©m… VĂ©sper! SĂł ela
Todo o cĂ©u, doce e pĂĄlida, alumia.De um mosteiro na cĂșpula irradia
Com frouxa luz… Em sua humilde cela,
Contemplativa e lĂąnguida Ă janela,
Triste freira, fitando-a, se extasia…VĂ©sper, envolta em deslumbrante alvura,
à nuvens, que ides pelo espaço afora!
A quem tĂŁo longo olhar volve da altura?Que olhar, irmĂŁo do seu, procura agora
Na terra o astro do amor? O olhar procura
Da solitĂĄria freira que o namora.
O Monge
-“O coração da infĂąncia”, eu lhe dizia,
“Ă manso.” E ele me disse:-“Essas estradas,
Quando, novo Eliseu, as percorria,
As crianças lançavam-me pedradas…”Falei-lhe entĂŁo na glĂłria e na alegria;
E ele-alvas barbas longas derramadas
No burel negro-o olhar somente erguia
Ăs cĂ©rulas regiĂ”es ilimitadas…Quando eu, porĂ©m, falei no amor, um riso
SĂșbito as faces do impassĂvel monge
Iluminou… Era o vislumbre incerto,Era a luz de um crepĂșsculo indeciso
Entre os clarÔes de um sol que jå vai longe
E as sombras de uma noite que vem perto!…