Aqueles que amam a vida não lêem. Nem sequer vão ao cinema, na realidade. Independentemente de tudo o que possa ser dito, o acesso ao universo artístico é mais ou menos inteiramente a preservação daqueles que estão um pouco fartos do mundo.
Passagens sobre Realidade
711 resultadosA Sua Verdadeira Realidade
Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma figura de homem.
Os seus passos vão com “ele” na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:
O “homem” vai andando com as suas idéias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar.
Olho-o de longe sem opinião nenhuma.
Que perfeito que é nele o que ele é — o seu corpo,
A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar.
O Abraço
O abraço. O abraço que parece estar a acabar. O abraço raro, o abraço verdadeiro. Da mãe que recebe o filho, da mulher que recebe o marido, do amigo que recebe o amigo. O abraço que não se pensa, que não se imagina. O abraço que não é; o abraço que tem de ser. O abraço que serve para viver. O abraço que acontece – e que não se esquece. Um dia hei-de passar todo o dia a ensinar o abraço. A visitar as escolas e a explicar que abraçar não é dois corpos unidos e apertados pelos braços. Abraçar é dois instantes que se fundem por dentro do que une dois corpos. Abraçar é um orgasmo de vida, um clímax de partilha – uma orgia de gente. Abraçar é fechar os olhos e abrir a alma, apertar os músculos e libertar o sonho. Abraçar é fazer de conta que se é herói – e sê-lo mesmo. Porque nada é mais heróico do que um abraço que se deixa ser. Porque nada é mais heróico do que ter a coragem de abraçar, em frente do mundo, em frente da dor, em frente do fim, em frente da derrota. Abraçar é a vitória do homem sobre o homem,
O Meio de Sedução deste Mundo
O meio de sedução deste mundo, bem como o signo de garantia de que ele é apenas uma transição, é uma e a mesma coisa. Com razão, pois só assim este mundo nos pode seduzir de uma forma que corresponda à verdade. O pior, no entanto, é que, depois da sedução bem-sucedida, nós esquecemo-nos da garantia; foi dessa maneira, na realidade, que o bem nos atraiu para o mal, e o olhar da mulher, para a sua cama.
Na realidade, viver como um homem significa escolher um objectivo e dirigir-se para ele com toda a conduta, pois não ordenar a vida a um fim é sinal de grande estupidez.
A certeza – isto é, a confiança no carácter objectivo das nossas percepções, e na conformidade das nossas ideias com a «realidade» ou a «verdade» – é um sintoma de ignorância ou de loucura. O homem mentalmente são não está certo de nada, isto é, vive numa incerteza mental constante; quer dizer, numa instabilidade mental permanente; e, como a instabilidade mental permanente é um sintoma mórbido, o homem são é um homem doente.
Os sonhos tornam-se realidade. Sem essa possibilidade, a natureza não nos incentivaria a tê-los.
A Monstruosa Amálgama da Identidade Europeia
O mal do totalitarismo é ser uniformizador e impositivo. Há sempre um modelo de perfeição, que os povos mais atrasados terão de seguir e com o qual terão de se comparar. Há sempre uma identidade superior, uma ideologia acima da realidade, um futuro comum aos mais diversos interesses. O totalitarismo é o grande inimigo da diferença e a própria democracia liberal, ao impor e exigir certas igualdades menos naturais, tem aspectos totalitários.
É com horror que assisto à construção da chamada «identidade» europeia, uma monstruosa amálgama beneluxiana que reduz todos os ingredientes nacionais a uma pasta amorfa de argamassa processada. Quando temo pela resistência da nossa diferença à uniformização europeia, não temo a nossa dominação de todas as nacionalidades — temo é a dominação de todas as nacionalidades por um euro-híbrido que não seja escolhido ou amado por nenhuma delas. A verdade é que a Itália está menos italiana, a Alemanha está menos alemã, a Inglaterra está menos inglesa e Portugal está menos português. E nem por isso estão mais parecidos com outra nacionalidade qualquer. O que perderam em carácter não ganharam em mais nada. As nações europeias estão cada vez mais iguais, mais incaracterísticas, mais chatas. Qualquer dia deixa de ter piada viajar.
O Corpo
Ante as portas desgarradas, paradoxal
é a morte: impossível, feito realidade,
acaso predito. Corpo, deus imortal,
para sempre cego e mudo, abandona-te ao livrear. Que te transformes e assemelhes à noite.
Tempestade final das sombras, foste, corpo,
respiração com voz, área que habitaste,
vária e discordante, a cada movimento.E agora que a luz desfalece e não a tocas,
nem por ela és tocado, a palavra deixou
de ser a tua pátria e não mais esfoliaso espaço. Agora, que já nada mudará,
nenhuma eternidade te rescende. A morte
petrifica o frágil espaço que foi teu.
A Imoralidade das Biografias
O génio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade, representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio. Se repousam, porém, sobre um igual fundo degenerativo, se o génio constitui, de por si, uma espécie nosográfica — são cousas que não sabemos. Manifestação especial de epilepsia larvada, como precipitadamente quis Lombroso, ou manifestação de uma diatese degenerativa, o certo é que o génio é, de sua natureza, uma anormalidade.
Sucede que a imaginação simplista das multidões não destrinça de instinto entre o que na personalidade do homem superior constitui, ou representa, superioridade, e o que nela resulta de concomitante, ou intercorrente, anormalidade psíquica, patentemente tal. No fundo, esta intuição espontânea é justa. Na personalidade tudo se liga, se inter-relaciona. Não podemos “separar”, salvo por um processo analítico conscientemente truncador da realidade, na personalidade de Goethe, por exemplo, a modalidade específica da sua ideação literária e a tendência alucinativa que, como se sabe, obriga à autoscopia externa; nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por ex., a inversão sexual.
Lembrai-vos que em toda festa, tendes dois convivas a entreter – o corpo e a alma; e o que dais ao corpo, na realidade o perdeis. Mas o que dais à alma, permanece para sempre.
Liberdade Absoluta e Necessidade Absoluta são Idênticas
Quem meditou sobre a liberdade e a necessidade descobriu por si que estes princípios têm se ser unificados no Absoluto – a liberdade porque o Absoluto age por potência autónoma incondicionada, a necessidade porque, justamente por isso, ele só age em conformidade com as leis do seu ser, com a necessidade interior da sua essência. Nele não há mais nenhuma vontade, que poderia afastar-se de uma lei, mas também nenhuma lei mais, que ele não desse a si mesmo apenas por suas acções, nenhuma lei que, independentemente de suas acções, tivesse realidade. Liberdade absoluta e necessidade absoluta são idênticas.
Não há desvantagem maior que a colocação das palavras e dos pensamentos dos outros à frente das nossas ideias, dos nossos prazeres e da nossa realidade.
Mais do que Amor
O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar… o quê? — perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia.
Erguia-se para uma nova manhã, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Cada acontecimento vibrava em seu corpo como pequenas agulhas de cristal que se espedaçassem. Depois dos momentos curtos e profundos vivia com serenidade durante largo tempo, compreendendo, recebendo, resignando-se a tudo. Parecia-lhe fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente ter-se distanciado dos homens. Apesar de que nesse período conseguia estender-lhes a mão com uma fraternidade de que eles sentiam a fonte viva. Falavam-lhe das próprias dores e ela, embora não ouvisse, não pensasse, não falasse, tinha um olhar bom — brilhante e misterioso como o de uma mulher grávida.
Um pensamento pode ser uma coisa excelente, mas a realidade começa com a acção.
Estatuto e Eternidade
Não me entendes, caríssimo Sebastião: dizes que misturo tudo. Dizes que é incomparável a liberdade de que hoje dispomos para imaginar, escolher, criar, viver. Pelo menos na nossa civilização, dizes. E eu rio-me do que tu dizes, e tu zangas-te com o meu riso, cuidando, como tanto se cuida naquilo a que chamas a nossa civilização, que me rio de ti. Querido Sebastião, rio-me porque aquilo a que chamas a nossa civilização ainda nem sequer começou. Importa-me a liberdade, sim, mas vejo que a usamos ainda e apenas como uma outra espécie de grilhão. Vestimos a liberdade como outrora vestíamos a submissão; ela não é mais do que um traje de baile, com um carnet em que apontamos os nomes daqueles com quem dançaremos para brilhar diante dos outros. Democratizou-se o anseio de estatuto, mas não conseguimos ainda sair dele. É isso que vejo, Sebastião.
Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob a superfície hiperbólica da realidade. Dizes que aquilo a que eu chamo estatuto pode também chamar-se ânsia de eternidade. Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião. A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude –
O Significado do Progresso
Que devemos entender por essa palavra? Se a definirmos como bons gramáticos, diremos que é um acréscimo de bem ou de mal, na medida em que possamos discernir entre o bem e o mal; e estaremos assim a representar o próprio avanço da humanidade. Mas se, como se faz nesta época em que não se sabe mais pensar nem falar, dissermos que o progresso é o movimento da humanidade que se aperfeiçoa sem cessar, estaremos a dizer uma coisa que não corresponde à realidade. Esse movimento não se observa na História, a qual só nos apresenta uma sucessão de catástrofes e de avanços seguidos de retrocessos.
Anseios
Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
Não valem o prazer duma saudade!Tu chamas ao meu seio, negra prisão!…
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!Não estendas tuas asas para o longe…
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!…
A realidade deixa muito à imaginação.
Conhecimento Interesseiro
Conhecer uma realidade é, no sentido habitual do termo «conhecer»: tomar conceitos já feitos, doseá-los, combiná-los até obter um equivalente prático do real. Mas não se deve esquecer que o trabalho da inteligência está longe de ser um trabalho desinteressado. Não visamos em geral conhecer por conhecer, mas conhecer para tomar uma decisão, para tirar algum proveito; enfim, para satisfazer algum interesse.