Quero dos deuses só que me não lembrem.
Passagens de Ricardo Reis
158 resultadosAssim Choram os Deuses
Os deuses desterrados.
Os irmãos de Saturno,
Às vezes, no crepúsculo
Vêm espreitar a vida.Vêm então ter conosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
É a presença deles,
Deuses que o destroná-los
Tornou espirituais,
De matéria vencida,
Longínqua e inativa.Vêm, inúteis forças,
Solicitar em nós
As dores e os cansaços,
Que nos tiram da mão,
Como a um bêbedo mole,
A taça da alegria.Vêm fazer-nos crer,
Despeitadas ruínas
De primitivas forças,
Que o mundo é mais extenso
Que o que se vê e palpa,
Para que ofendamos
A Júpiter e a Apolo.Assim até à beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepúsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.E o poente tem cores
Da dor dum deus longínquo,
E ouve-se soluçar
Para além das esferas…
Assim choram os deuses.
Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Sábio é o que se Contenta com o Espetáculo do Mundo
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.
Por que não Haverá de Mim um Deus?
Se a cada coisa que há um deus compete,
Por que não haverá de mim um deus?
Por que o não serei eu?
É em mim que o deus anima
Porque eu sinto.
O mundo externo claramente vejo —
Coisas, homens, sem alma.
Coroemo-nos Pois uns para os Outros
Tuas, não minhas, teço estas grinaldas,
Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu não vejo.
Se não pesar na vida melhor gozo
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos uníssonos à sorte
Que houver, até que chegue
A hora do barqueiro.
No Magno Dia até os Sons São Claros
No magno dia até os sons são claros.
Pelo repouso do amplo campo tardam.
Múrmura, a brisa cala.
Quisera, como os sons, viver das coisas
Mas não ser delas, consequência alada
Em que o real vai longe.
Cada Coisa a seu Tempo Tem seu Tempo
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falemDas flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamosNesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
Da Nossa Semelhança com os Deuses
Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.Altivamente donos de nós-mesmos,
Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para, esquecer o estio.
Não de outra forma mais apoquentada
Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente, fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. Enlacemos as mãos…
Certeza Única é o Mal Presente
Pois que nada que dure, ou que, durando,
Valha, neste confuso mundo obramos,
E o mesmo útil para nós perdemos
Conosco, cedo, cedo.O prazer do momento anteponhamos
À absurda cura do futuro, cuja
Certeza única é o mal presente
Com que o seu bem compramos.Amanhã não existe. Meu somente
É o momento, eu só quem existe
Neste instante, que pode o derradeiro
Ser de quem finjo ser?
Vossa Formosa Juventude
Vossa formosa juventude leda,
Vossa felicidade pensativa,
Vosso modo de olhar a quem vos olha,
Vosso não conhecer-vos —Tudo quanto vós sois, que vos semelha
À vida universal que vos esquece
Dá carinho de amor a quem vos ama
Por serdes não lembrandoQuanta igual mocidade a eterna praia
De Cronos, pai injusto da justiça,
Ondas, quebrou, deixando à só memória
Um branco som de ‘spuma.
Tão Cedo Passa Tudo quanto Passa
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Sereno Aguarda o Fim que Pouco Tarda
Sereno aguarda o fim que pouco tarda.
Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.
Quanto pensas emprega
Em não muito pensares.Ao nauta o mar obscuro é a rota clara.
Tu, na confusa solidão da vida,
A ti mesmo te elege
(Não sabes de outro) o porto.
Nada é Prémio: Sucede o que Acontece
A cada qual, como a ‘statura, é dada
A justiça: uns faz altos
O fado, outros felizes.Nada é prêmio: sucede o que acontece.
Nada, Lídia, devemos
Ao fado, senão tê-lo.
Aos que a Felicidade é Sol, Virá a Noite
Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada ‘spera
Tudo que vem é grato.
Nada Fica de Nada
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
A Flauta Calma de Pã
De Apolo o carro rodou pra fora
Da vista. A poeira que levantara
Ficou enchendo de leve névoa
O horizonte;A flauta calma de Pã, descendo
Seu tom agudo no ar pausado,
Deu mais tristezas ao moribundo
Dia suave.Cálida e loura, núbil e triste,
Tu, mondadeira dos prados quentes,
Ficas ouvindo, com os teus passos
Mais arrastados,A flauta antiga do deus durando
Com o ar que cresce pra vento leve,
E sei que pensas na deusa clara
Nada dos mares,E que vão ondas lá muito adentro
Do que o teu seio sente cansado
Enquanto a flauta sorrindo chora
Palidamente.
Mortalmente Compramos Ter Mais Vida que a Vida
A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,Não mudou desde Cecrops. Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! —
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.
Só Esta Liberdade nos Concedem os Deuses
Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possuído
Convencimento antigo
De que é divina e livre a sua vida.Nós, imitando os deuses,
Tão pouco livres como eles no Olimpo,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses saberão agradecer-nos
O sermos tão como eles.