Na Tua Voz, Irmão
Estavam sentados e não falavam. Cada um olhava para um lado que não via. Atrás dos rostos tristes, cismavam. Pensando, Moisés dizia palavras ao irmão, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia será um instante e trará a solidão. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Já reparaste?, nunca precisámos de nos chamar. Não sei como é o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmão, irmão. Não sei como é o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero será a antecâmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidão. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nós para sermos só tu e só eu. Mas não esqueceremos. E lembrarmo-nos será o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e não podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordávamos e olhávamos um para o outro, pois tínhamos acordado ao mesmo tempo e tínhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,
Passagens sobre Rios
470 resultadosPortugal
Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor,
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa…Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…
Marília de Dirceu
(excerto)
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela, graças à minha estrela!Eu vi o meu semblante numa fonte:
dos anos inda não está cortado;
os pastores que habitam este monte
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste,
nem canto letra que não seja minha.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!Mas tendo tantos dotes da ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que o teu afeto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
E bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho, que cubra monte e prado;
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Aboio De Ternura Para Uma Rês Desgarrada Para Astrid Cabral
Fora de tua tribo peixe fora d’água,
bordando as muitas dores no ponto de cruz,
alinhavas rebanhos reunidos na frágua
dos rios da tua infância com escamas de luz.Versos tecidos na cambraia das anáguas
de alices caboclas, yaras-cunhãs do fundo,
encantadas dos peraus, afogando mágoas,
mas que sabem, sestrosas, dos botos do mundo.E os teus pés desgarrados pisaram em nuvens
de ventos sem mormaços, no azul de outras línguas:
águas despidas do alfenim de nossas chuvas.Te sabias folha de relva da ravina
irmã de Whitman e do Khayam simum
próxima do teu gado e rês da própria sina.
Diário de Viagem: O poeta foi visto por um rio, por uma árvore, por uma estrada…
A Gonçalves Dias
Celebraste o domínio soberano
Das grandes tribos, o tropel fremente
Da guerra bruta, o entrechocar insano
Dos tacapes vibrados rijamente,O maracá e as flechas, o estridente
Troar da inúbia, e o canitar indiano…
E, eternizando o povo americano,
Vives eterno em teu poema ingente.Estes revoltos, largos rios, estas
Zonas fecundas, estas seculares
Verdejantes e amplíssimas florestasGuardam teu nome: e a lira que pulsaste
Inda se escuta, a derramar nos ares
O estridor das batalhas que contaste.
Tempestade Amazônica
O calor asfixia e o ar escurece. O rio,
Quieto, não tem uma onda. Os insetos na mata
Zumbem tontos de medo. E o pássaro, o sombrio
Da floresta procura, onde a chuva não bata.Súbito, o raio estala. O vento zune. Um frio
De terror tudo invade… E o temporal desata
As peias pelo espaço e, bufando, bravio,
O arvoredo retorce e as folhas arrebata.O anoso buriti curva a copa, e farfalha.
Aves rodam no céu, num estéril esforço,
Entre nuvens de folha e fragmentos de palha.No alto o trovão repousa e em baixo a mata brama.
Ruge em meio a amplidão. Das nuvens pelo dorso
Correm serpes de fogo. E a chuva se derrama…
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
O rio não quer chegar, mas ficar largo e profundo…
Uma Vida Calma e Tranquila
A primeira pergunta que Diógenes fez a Alexandre é a primeira pergunta que qualquer pessoa inteligente deve fazer a si própria. Diógenes não desperdiçou um único momento.
– Alexandre, estás a tentar conquistar o mundo inteiro. Então e tu? Terás tempo suficiente, depois de conquistares o mundo, para te conheceres a ti próprio? Tens certezas sobre o amanhã ou sobre o próximo momento?
Alexandre nunca tinha conhecido um homem assim. Ele já tinha vencido grandes reis e imperadores, mas percebeu que Diógenes era um homem muito poderoso. Baixando os olhos, Alexandre respondeu:
– Não te posso dizer que esteja certo sobre o momento seguinte. Mas posso prometer-te uma coisa: quando tiver conquistado o mundo, vou desejar descansar e viver uma vida calma, tal como tu.
Diógenes estava a gozar um banho de sol matinal junto a um rio, rodeado por bonitas árvores. Ele riu-se… por vezes penso que o seu riso ainda deve continuar a ecoar.
Pessoas como Diógenes pertencem à eternidade. As suas assinaturas não são feitas na água.
Alexandre sentiu-se ofendido e perguntou-lhe porque se estava a rir.
– É muito simples! – respondeu Diógenes. – Se eu posso descansar e viver uma vida calma sem ter conquistado o mundo,
Sempre O Sonho
Para encantar os círculos da Vida
Ë ser tranqüilo, sonhador, confiante,
Sempre trazer o coração radiante
Como um rio e rosais junto de ermida.Beber na vinha celestial, garrida
Das estrelas o vinho flamejante
E caminhar vitorioso e ovante
Como um deus, com a cabeça enflorescida.Sorrir, amar para alargar os mundoe
Do Sentimento e para ter profundos
Momentos de momentos soberanos.Para sentir em torno à terra ondeando
Um sonho, sempre um sonho além rolando
Vagas e vagas de imortais oceanos.
Ideal Comum
(Soneto escrito em colaboração com Oscar Rosas).
Dos cheirosos, silvestres ananases
De casca rubra e polpa acidulosa,
Tens na carne fremente, volutuosa,
Os aromas recônditos, vivazes.Lembras lírios, papoulas e lilazes;
A tua boca exala a trevo e a rosa,
Resplande essa cabeça primorosa
E o dia e a noite nos teus olhos trazes.Astros, jardins, relâmpagos e luares
Inundam-te os fantásticos cismares,
Cheios de amor e estranhos calafrios;E teus seios, olímpicos, morenos,
Propinando-me trágicos venenos,
São como em brumas, solitários rios.
Nós chegamos à morte como um rio que desagua no mar: uma parte está a nascer e, simultaneamente, a outra já se assombra no sem-fim.
Ontem à Tarde um Homem das Cidades
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os
outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.
Soneto XVI
Já tramontado o Sol do assento puro,
Debuxadas se vêem no claro rio
As seis filhas de Atlante pelo estio,
Cobre-se Electra, só, de um manto escuro.Já que com tanto risco me aventuro,
E sou tachado por escuro e frio,
Mostrem-se todos, que eu num só desvio
De vergonha escondido estar procuro.Mas bem sabeis, engenho ilustre e nobre,
Que inda que o lavrador bárbaro veja
Que não são mais que seis estas estrelas,O Astrólogo sábio, que descobre
Mais avante e co’a vista além peleja,
Diz que são sete, esconde-se ua delas.
Febre Vermelha
Rozas de vinho! Abri o calice avinhado!
Para que em vosso seio o labio meu se atole:
Beber até cair, bebedo, para o lado!
Quero beber, beber até o ultimo gole!Rozas de sangue! Abri o vosso peito, abri-o!
Montanhas alagae! deixae-as trasbordar!
As ondas como o oceano, ou antes como um rio
Levando na corrente Ophelias de luar…Camelias! Entreabri os labios de Eleonora!
Desabrochae, á lua, a ancia dos vossos calis!
Dá-me o teu genio, dá! ó tulipa de aurora!
E dá-me o teu veneno, ó rubra digitalis…Papoilas! Descerrae essas boccas vermelhas!
Apagae-me esta sede estonteadora e cruel:
Ó favos rubros! os meus labios são abelhas,
E eu ando a construir meu cortiço de mel…Rainunculos! Corae minhas faces-de-terra!
Que seja sangue o leite e rubins as opalas!
Tal se vêm pelo campo, em seguida a uma guerra,
Tintos da mesma cor os corações e as balas!…Chagas de Christo! Abri as petalas chagadas!
N’uma raiva de cor, n’uma erupção de luz!
Escancarae a bocca, ás vermelhas rizadas,
Cancros de Lazaro!
Nádegas é importantíssimo. Grave, porém, é o problema das saboneteiras. Uma mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes.
Soneto Da Enseada
Sou sempre o que está além de mim
como a ponte de Brooklyn ao pôr-do-sol.
Sou o peixe buscado pelo anzol
e o caracol imóvel no jardim.De mim mesmo me parto, qual navio,
e sou tudo o que vive além de mim:
o barulho da noite e o cheiro de jasmim
que corre entre as estrelas como um rio.Quem atravessa a ponte logo aprende
que a vida é simplesmente a travessia
entre um aquém e um além que são dois nadas.Na madrugada escura a luz se acende.
Que luz? De que vigília ou de que dia?
De que barco ancorado na enseada?
Da Mais Alta Janela da Minha Casa
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi
sua.
Passo e fico,