Lúcia
(Alfred de Musset)
Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balsas
E temendo acordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites belas as volúpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;
Ouvíamos a noite, entre-fechada,
A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos
E tínhamos quinze anos!Lúcia era loura e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a amava – e tanto ! –
Era assim de um irmão o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mãos nas minhas;
Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,
Passagens sobre Riso
275 resultadosAs Pessoas Riam-se de Mim
A minha susceptibilidade a certo tipo de sustos (medo) era grande. Na rua, um homem caminhando na minha direcção, isto é, na direcção contrária, tirou da algibeira um lenço à minha frente; comecei de imediato a pensar, inconscientemente, acho, que estava a tirar uma arma ou um revólver.
A minha vista curta — nem sempre, mas excessivamente no que respeita aos traços das pessoas, aos gestos — afectava o meu cérebro desequilibrado. A minha imaginação interpretava mal o carácter dos seus olhares. Distorcia, não sabia explicar porquê, a intenção e o significado dos seus gestos. O meu próprio sentido de audição era débil; aplicava a mim próprio, retorcendo-as, as palavras que captava. Via em cada palavra um termo destinado a ofender-me, em cada frase, mal apanhada, a sombra e o vislumbre de um insulto.
As pessoas na rua riam-se: riam-se de mim. A minha vista débil não me deixava destruir esta ilusão. Não me atrevia a pôr os óculos que tinha no bolso, pois temia que as minhas desconfianças se revelassem fundadas.
Ansiava por ter uma grande auto-estima, para que a minha pessoa me fizesse esquecer de mim próprio. Desejava, oh, como desejava! — o impulso de me dedicar aos outros para que eles me fizessem esquecer de mim.
Sonho
Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Num poço ou num cristal me debrucei.
Só no teu rosto a morte me alcançava.De quem a morte, por terror de mim?
De quem o infinito que faltava?
Numa casa de vidro vi meu fim.
Numa casa de vidro me esperavas.Numa casa de vidro as persianas
desciam lentamente e em seu lugar
a noite abria o escuro das entranhas
e o teu rosto morria devagar.Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Fiz do teu corpo sonho e não olhei
nas palavras a morte que guardavas.Descemos devagar as persianas,
deixámos que o amor nos corroesse
o íntimo da casa e as estranhas
cerimónias do dia que adoece.Numa casa de vidro. Num espelho.
Na memória, por vezes amargura,
por vezes riso falso de tão velho,
cantar da sombra sobre a selva escura.Numa casa de vidro te sonhei.
No vazio dessa casa me esperavas.
Saber Sair na Hora Certa
Não esperar até ser sol poente. É máxima do cordo deixar as coisas antes que elas o deixem. Que se saiba converter em triunfo o próprio fenecer, pois às vezes mesmo o sol, ainda brilhante, costuma retirar-se numa nuvem para que não o vejamos cair, e nos deixa suspensos, não sabendo se ele se pôs ou não. Furte-se aos ocasos para não rebentar de desdouros; não espere que lhe voltem as costas, porque o sepultarão vivo para o sentimento e morto para a estima. O atilado dispensa a tempo o cavalo em que corre, e não espera que, caindo, faça erguer-se o riso no meio da corrida; que a beleza quebre o espelho com tempo e com astúcia, e não com impaciência depois, ao ver o seu desengano.
Ode ao Destino
Destino: desisti, regresso, aqui me tens.
Em vão tentei quebrar o círculo mágico
das tuas coincidências, dos teus sinais, das ameaças,
do recolher felino das tuas unhas retracteis
– ah então, no silêncio tranquilo, eu me encolhia ansioso
esperando já sentir o próximo golpe inesperado.Em vão tentei não conhecer-te, não notar
como tudo se ordenava, como as pessoas e as coisas chegavam
que eu, de soslaio, e disfarçando, observava [em bandos,
pura conter as palavras, as minhas e as dos outros,
para dominar a tempo um gesto de amizade inoportuna.Eu sabia, sabia, e procurei esconder-te,
afogar-te em sistemas, em esperanças, em audácias;
descendo à fé só em mim próprio, até busquei
sentir-te imenso, exacto, magnânimo,
único mistério de um mundo cujo mistério eras tu.Lei universal que a sem-razão constrói,
de um Deus ínvio caminho, capricho dos Deuses,
soberana essência do real anterior a tudo,
Providência, Acaso, falta de vontade minha,
superstição, metafísica barata, medo infantil, loucura,
complexos variados mais ou menos freudianos,
contradição ridícula não superada pelo menino burguês,
educação falhada,
Poeminha Compensatório
Amigas, venham todas
Tragam o sal, o sol, o som, a vida,
O riso, a onda.
Eu sou o Cavalheiro da Triste Figura
Mas tenho uma bela Távola RedondaSaio sempre do cinema
Com o sentimento desagradável
De que, se não houvesse lido a
Crítica, teria sido formidável!
A Profundidade do Ser
E de vez em quando descer à gravidade de mim, à profundidade do meu ser. E verificar então que tudo se transfigura. Que é que significa este garatujar quase gratuito, este riso superficial, todo este modo de ser menor? A melancolia profunda, tão de dentro que ela se iguala à alegria sem medida. Espaço rarefeito de nós, é o lugar da grandeza do homem, do que é nele fundamental, o lugar do aparecimento de Deus. Mas Deus não me aparece – aparece apenas a inundação que me vem da infinita beatitude, da grandeza e do assombro. Nós vivemos habitualmente à superfície de nós, ligados ao que é da vida imediata, enredados nas mil futilidades com que se nos enchem os dias. Mas de vez em quando, o abismo da natureza, um livro ou uma música que dos abismos vem, abre-nos aos pés um precipício hiante e tudo se dilui num sentir que está antes e abaixo e mais longe que esse tudo. Há uma harmonia que em nós espera por um som, um acorde, uma palavra, para imediatamente se organizar e envolver-nos. E aí somos verdade para a infinidade dos séculos.
Eu esqueci você como deveria, claro que sim. Exceto quando escuto seu nome ou o riso de outra pessoa quando é igual ao seu.
Pensando-vos Estou, Filha
Pensando-vos estou, filha;
vossa mãe me está lembrando;
enchem-se-me os olhos d’água,
nela vos estou lavando.
Nascestes, filha, entre mágoa,
para bem inda vos seja,
que no vosso nascimento
vos houve a fortuna inveja.
Morto era o contentamento,
nenhuma alegria ouvistes;
vossa mãe era finida,
nós outros éramos tristes.
Nada em dor, em dor crescida,
não sei onde isto há de ir ter;
vejo-vos, filha, formosa,
com olhos verdes crescer.
Não era esta graça vossa
para nascer em desterro;
mal haja a desaventura
que pôs mais nisto que o erro.
Tinha aqui sua sepultura
vossa mãe, e a mágoa a nós;
não éreis vós, filha, não,
para morrerem por vós.
Não houve em fados razão,
nem se consentem rogar;
de vosso pai hei mor dó,
que de si se há de queixar.
Eu vos ouvi a vós só,
primeiro que outrem ninguém;
não fôreis vós se eu não fora;
não sei se fiz mal, se bem.
Mas não pode ser, senhora,
para mal nenhum nascentes,
com este riso gracioso
que tendes sobr’olhos verdes.
Acrobata Da Dor
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta…Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço…E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
O Supremo Palhaço da Criação
A velha noção antropomórfica de que todo o universo se centraliza no homem – de que a existência humana é a suprema expressão do processo cósmico – parece galopar alegremente para o baú das ilusões perdidas. O facto é que a vida do homem, quanto mais estudada à luz da biologia geral, parece cada vez mais vazia de significado. O que no passado deu a impressão de ser a principal preocupação e obra-prima dos deuses, a espécie humana começa agora a apresentar o aspecto de um sub-produto acidental das maquinações vastas, inescrutáveis e provavelmente sem sentido desses mesmos deuses.
(…) O que não quer dizer, naturalmente, que um dia a tal teoria seja abandonada pela grande maioria dos homens. Pelo contrário, estes a abraçarão à medida que ela se tornar cada vez mais duvidosa. De fato, hoje, a teoria antropomórfica ainda é mais adoptada do que nas eras de obscurantismo, quando a doutrina de que um homem era um quase Deus foi no mínimo aperfeiçoada pela doutrina de que as mulheres inferiores. O que mais está por trás da caridade, da filantropia, do pacifismo, da “inspiração” e do resto dos atuais sentimentalismos? Uma por uma, todas estas tolices são baseadas na noção de que o homem é um animal glorioso e indescritível,
umas vezes falavas-me dos rios
umas vezes falavas-me dos rios
e densas cicatrizes
e o sangue
procediaoutras vezes velava-te uma lâmpada
de faias e de enigmas
e a sombra
repousavaoutras vezes o barro
originava
uma erupção de insónia recidiva
no gume do incêndio onde jaziasnessas vezes a água do teu riso
abria nos meus pulsos uma rosa
e eu entontecia
Soneto III
Rosto que a branca rosa tem vencida,
E ante quem a vermelha é descorada,
Olhos, claras estrelas, que espantada
Têm a alma, aceso o peito, presa a vida;Cabelos, puros raios, que abatida
Deixam da manhã clara a luz dourada,
Divina fermosura, acompanhada
De üa virtude a poucas concedida;Palavras cheias de alto entendimento
Raro riso, alto assento, casto peito,
Santos costumes, vivo e grave esprito;Divino e repousado movimento,
E muito mais, que está em minha alma escrito,
Me tem num puro amor todo desfeito.
Os homens deveriam saber que é do cérebro, e de nenhum outro lugar, que vêm as alegrias, as delícias, o riso e as diversões, e tristezas, desânimos e lamentações.
Ciclo
Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
A árvore pulsa, no primeiro assomo
Da vida, inchando a seiva ao sol… Sonhar!Dia. A flor – o noivado e o beijo, como
Em perfumes um tálamo e um altar:
A árvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros… Amar!Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;
A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da idéia em perfeição… Pensar!Noite. Oh! Saudade!… A dolorosa rama
Da árvore aflita pelo chão derrama
As folhas, como lágrimas… Lembrar!
De Que Vale a Sabedoria ?
Os homens que se entregam à sabedoria são de longe os mais infelizes. Duplamente loucos, esquecem que nasceram homens e querem imitar os deuses poderosos, e a exemplo dos Titãs, armados com as ciências e as artes, declaram guerra à Natureza. Ora, os menos infelizes são aqueles que mais se aproximam da animalidade e da estupidez.
Tentarei fazer-vos entender isto, usando, em vez dos argumentos dos estóicos, um exemplo crasso. Haverá, pelos deuses imortais, espécie mais feliz que os homens a quem o vulgo chama loucos, parvos, imbecis, cognomes belíssimos, na minha opinião? Esta afirmação poderá a princípio parecer insensata e absurda e, no entanto, nada há de mais verdadeiro. Tais homens não receiam a morte, e, por Júpiter! isso já não representa pequena vantagem! A sua consciência não os incomoda. As histórias de fantasmas não os aterrorizam, nem os afecta o medo das aparições e espectros, nem os males que os ameaçam ou a esperança dos bens que poderão vir a receber. Nada, em resumo, os atormenta, isentos dos mil cuidadeos de que a vida é feita. Ignoram a vergonha, o medo, a ambição, a inveja e chegam mesmo, se são suficientemente estúpidos, a gozar o privilégio, segundo os teólogos,
Nerah
(Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea)
A Vítor LobatoNerah não brinca mais, não dança mais. — E agora
Que vão-se apropinquando os tempos invernosos,
Nerah traz uns receios tímidos, nervosos,
De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
Se vão embora, embora à vinda dos invernos,
Seguindo em debandada os úmidos galernos —
— lembrando um roto bando informe de mendigos.Não canta o sabiá que triste na gaiola,
Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
De um riso — aquela flor que esvai-se, branca e fria.Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de interjeições!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.
Meu Mal
A meu irmão
Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,
Eu sei o nome ao meu estranho mal:
Eu sei que fui a renda dum vitral,
Que fui cipreste, caravela, dor!Fui tudo que no mundo há de maior:
Fui cisne, e lírio, e águia, e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou, um cínico riso de Chamfort…Fui a heráldica flor de agrestes cardos,
Deram as minhas mãos aroma aos nardos…
Deu cor ao eloendro a minha boca…Ah! de Boabdil fui lágrima na Espanha!
E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha,
Mágoa não sei de quê! Saudade louca!
Repouso na Alegria Comedido
Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra um paraíso;
Entre rubis e perlas, doce riso,
Debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se pode por arte e por aviso,
Como por natureza, ser formosa;Fala de que ou já vida, ou morte pende,
Rara e suave, enfim, Senhora, vossa,
Repouso na alegria comedido:Estas as armas são com que me rende
E me cativa Amor; mas não que possa
Despojar-me da glória de rendido.
Qualquer outro Bem Julgo por Vento
Quando da bela vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão elevado sinto o pensamento,
Que me faz ver na terra o Paraíso.Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento:
Assim que em termo tal, segundo sento,
Pouco vem a fazer quem perde o siso.Em louvar-vos, Senhora, não me fundo;
Porque quem vossas graças claro sente,
Sentirá que não pode conhecê-las.Pois de tanta estranheza sois ao mundo,
Que não é de estranhar, dama excelente,
Que quem vos fez, fizesse céu e estrelas.