A Manhã
A rosada manhã serena desce
Sobre as asas do Zéfiro orvalhadas;
Um cristalino aljôfar resplandece
Pelas serras de flores marchetadas;
Fugindo as lentas sombras dissipadas
Vão em sutil vapor, que se converte
Em transparentes nuvens prateadas.
Saúdam com sonora melodia
As doces aves na frondosa selva
O astro que benéfico alumia
Dos altos montes a florida relva;Uma a cantiga exprime modulada
Com suave gorjeio, outra responde
Cos brandos silvos da garganta inflada,
Como os raios, partindo do horizonte,
Ferem, brilhando com diversas cores,
As claras águas de serena fonte.Salve, benigna luz, que os resplandores,
Qual perene corrente cristalina,
Que de viçoso prado anima as flores,
Difundes da celeste azul campina,
Vivificando a lassa natureza,
Que no seio da noite tenebrosa
O moribundo sonho tinha presa.Como alegre desperta e radiosa!
De encantos mil ornada se levanta,
Qual do festivo leito a nova esposa!
A mesma anosa, carcomida planta
Co matutino orvalho reverdece.
A úmida cabeça ergue viçosa
A flor, que rociada resplandece,
E risonha,
Passagens sobre Sagrado
208 resultadosTemos de fazer o melhor que podemos. Esta é a nossa sagrada responsabilidade humana.
Noites Amadas
Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh’alma canta como a sereia,
Vive cantando n’um mar de rosas;Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha Esperança de mágoas nua…Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena,
Como eu vos amo, noites de lua!
Floripes
Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono…Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.
Arrepender-se do passado, aborrecer-se no presente, temer o futuro: assim é a vida. Só a morte, a quem está confiada a renovação sagrada das coisas, me promete a paz.
A tradição mais profunda é a que vem da pré-história; noção alguma de propriedade; nenhuma instituição do sagrado; acordo sim, chefia não; de escola nem sinal.
Nona Sinfonia
É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
Basta saber algumas línguas, e ler o livro sagrado de algumas religiões, pra verificar que só existe um Deus, que deu a cada país seu próprio profeta – sempre péssimo tradutor
Última Folha
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã, — e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
Irás, musa celeste!Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Saudades
Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?…
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!Esquecer! Para quê?… Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!
Poz-te Deus Sobre a Fronte a Mão Piedosa
Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fada o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «vae, filha, sê formosa!»E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste n’este solo angustiado,
Estrela envolta n’um clarão sagrado,
Do teu limpido olhar na luz radiosa…Mas eu… posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais… a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!
O Ópio
…Havia ruas inteiras dedicadas ao ópio… Os fumadores deitavam-se sobre baixas tarimbas… Eram os verdadeiros lugares religiosos da Índia… Não tinham nenhum luxo, nem tapeçarias, nem coxins de seda… Era tudo madeira por pintar, cachimbos de bambu e almofadas de louça chinesa… Pairava ali uma atmosfera de decência e austeridade que não existia nos templos… Os homens adormecidos não faziam movimento ou ruído… Fumei um cachimbo… Não era nada… Era um fumo caliginoso, morno e leitoso… Fumei quatro cachimbos e estive cinco dias doente, com náuseas que vinham da espinha dorsal, que me desciam do cérebro… E um ódio ao sol, à existência… O castigo do ópio… Mas aquilo não podia ser tudo… Tanto se dissera, tanto se escrevera, tanto se vasculhara nas maletas e nas malas, tentando apanhar nas alfândegas o veneno, o famoso veneno sagrado… Era preciso vencer a repugnância… Devia conhecer o ópio, provar o ópio, afim de dar o meu testemunho… Fumei muitos cachimbos, até que conheci… Não há sonhos, não há imagens, não há paroxismos… Há um enfraquecimento metódico, como se uma nota infinitamente suave se prolongasse na atmosfera… Um desvanecimento, um vácuo dentro de nós… Qualquer movimento do cotovelo, da nuca, qualquer som distante de carruagem,
O amor é de essência divina e todos vós, do primeiro ao último, tendes, no fundo do coração, a centelha desse fogo sagrado.
Natal
Mais uma vez, cá vimos
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, — do fundo
Da miséria que somos.Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos — não uma vez, mas cada —
Teus assassinos.À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infane.Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
Para qualquer um que tenha se apaixonado profundamente, o profano é sagrado.
Feliz!
Ser de beleza, de melamcolia,
Espírito de graça e de quebranto,
Deus te bendiga o doloroso pranto,
Enxugue as tuas lágrimas um dia.Se a tu’alma é d’estrela e d’harmonia,
Se o que vem dela tem divino encanto,
Deus a proteja no sagrado manto,
No céu, que é o vale azul da Nostalgia.Deus a proteja na felicidade
Do sonho, do mistério, da saudade,
De cânticos, de aroma e luz ardente.E sê feliz e sê feliz subindo,
Subindo, a Perfeição na alma sentindo
Florir e alvorecer libertamente!
Poemas São como Vitrais Pintados
Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? — Que lhe preste!…
E agastado fique toda a vida!Mas — vamos! — vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é pra vós, filhos de Deus!
Edificai-vos, regalai os olhos!Tradução de Paulo Quintela
Esperança
Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco…
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.
Sanhudo, Inexorável Despotismo
Sanhudo, inexorável Despotismo
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do Ateísmo:Assanhas o danado Fanatismo,
Porque te escore o trono onde te enlevas;
Por que o sol da Verdade envolva em trevas
E sepulte a Razão num denso abismo.Da sagrada Virtude o colo pisas,
E aos satélites vis da prepotência
De crimes infernais o plano gizas,Mas, apesar da bárbara insolência,
Reinas só no ext’rior, não tiranizas
Do livre coração a independência.
Princípio de Amores com Marília
Um rácimo ferral engrinaldado
Com rosas carmesins no seu regaço,
Tinha Marília um dia, e o pé, c’um laço,
De fita verde mar lhe tinha atado.Eu, de seus magos olhos já tocado,
Junto dela cheguei com leve passo,
E furtando-lhe o cacho, dele faço
Néctar que a Jove, igual, nunca foi dadoEm taça de cristal, co’as mesmas rosas,
E do mesmo listão toda enfeitada,
O licor lhe fui pôr nas mãos mimosas.Marília se sorriu, bebeu, corada,
O sagrado elixir e as deleitosas
Primícias deu d’Amor, por Baco instada.