Passagens sobre Sapatos

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Frases sobre sapatos, poemas sobre sapatos e outras passagens sobre sapatos para ler e compartilhar. Leia as melhores citaçÔes em Poetris.

Esta Dor que me Faz Bem

As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mĂŁe?

Este cheiro de além-vida
e de indizĂ­vel tristeza,
do tempo morto, esquecido…
TĂŁo desbotada e puĂ­da
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.

Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega Ă  cama onde me estendo
num perfume de violeta.

Vejo as tuas jĂłias falsas
que usavas todos os dias,
do princĂ­pio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mĂŁe, e as melodias
que cantavas ao piano.

Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.

Quantas voltas deu na vida
este ĂĄlbum de retratos,
de veludo cor de tĂ­lia?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?

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Poeta

– Poeta errante,
de olhar vago e distante
e azul,
o teu perfil singular
recorta-se angular
ao norte e ao sul.

– Os teus fatos coçados
bate-os o vento
e leva-os aos bocados…

E os sapatos gastos
pedem grandes repastos,
abrem bocas, esfomeados.

(Nos bolsos, imagino
asas de borboletas,
molhos de folhas secas,
poeiras e papĂ©is…)

– Poeta errante,
caem por terra os livros e a estante,
e as torres esguias das igrejas,
e as paredes velhas dos bordĂ©is!…

– Poeta errante,
vamos dormir na sombra dos vergĂ©is!…

Os Amantes

Amor, Ă© falso o que dizes;
Teu bom rosto Ă© contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;

O teu meu Ă© mel azedo,
NĂŁo creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vĂŁo rosto ledo;
JĂĄ estou muito escaldado,
JĂĄ d’ĂĄguas frias hei medo.

Teus prémios são pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.

Fartei-te assaz a vontade;
Em vĂŁos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?

És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ĂĄvidos dentes
Os ossos ensanguentados.

Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
PÔe a mira em outra parte
Que daqui nĂŁo tiras nada.

Busca algum fofo morgado
Que, solto jĂĄ dos tutores,
Ao domingo penteado,
VĂĄ dizendo Ă  toa amores
Pelas pias encostado;

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Sais para um passeio e o mundo abre-se para ti. E antes que tenhas esticado as tuas pernas apropriadamente, ele fecha-se. Daí em diante tudo é apenas iluminado por uma lanterna. E eles chamam a isto ter vivido. Nem vale o trabalho de calçar os sapatos.

Os Sinos

1

Os sinos tocam a noivado,
No Ar lavado!
Os sinos tocam, no Ar lavado,
A noivado!

Que linda criança que assoma na rua!
Que linda, a andar!
Em extasi, o povo commenta que Ă© a Lua,
Que vem a andar…

Tambem, algum dia, o povo na rua,
Quando eu cazar,
Ao ver minha noiva, dirĂĄ que Ă© a Lua
Que vae cazar…

2

E o sino toca a baptizado
Que lindo fado?
E o sino toca um lindo fado,
A baptizado!

E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o lavar,
E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o sujar.

Ó boa madrinha, que o enxugas de leve,
Tem dĂł d’esses gritos! Comprehende esses ais:
Antes o enxugue a Velha! antes Deus t’o leve!
NĂŁo soffre mais…

3

Os sinos dobram por anjinho,
Coitadinho!
Os sinos dobram, coitadinho…
Pelo anjinho!

Que aceiada que vae p’ra cova!
Olhae! olhae!
Sapatinhos de sola nova,
Olhae!

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Sempre tive pena mim mesmo, porque não tinha sapatos até um dia que encontrei um homem que não tinha pés.

Prazeres

O primeiro olhar da janela de manhĂŁ
O velho livro de novo encontrado
Rostos animados
Neve, o mudar das estaçÔes
O jornal
O cĂŁo
A dialéctica
Tomar duche, nadar
Velha mĂșsica
Sapatos cĂłmodos
Compreender
MĂșsica nova
Escrever, plantar
Viajar, cantar
Ser amĂĄvel.

Assim como o negĂłcio dos alfaiates Ă© fazer roupas, e o negĂłcio dos sapateiros Ă© remendar sapatos, o negĂłcio dos cristĂŁos Ă© orar.

A Força Exacta Ă© ViolĂȘncia

a Força Exacta Ă© violĂȘncia.
a Força em espirro, ao acaso, nĂŁo Ă© violĂȘncia, Ă© existĂȘncia.
O mal é Fixar a Força (direccionå-la) porque a natureza espon-
tĂąnea nĂŁo o FAZ.
Natural é ser FORTE, isto é, avançar.
Violento é o Percurso que antecede o viajante. Antes dos pés:
Sapatos; a estrada.
A Força Exacta Ă© violĂȘncia.
A natureza não tem, nunca teve, Forças EXACTAS.
E tudo o que o homem faz Ă© tornar exacta a FORÇA.
Ser violento Ă© construir; todo o EdifĂ­cio Ă© violĂȘncia.
O homem Ă© o Exacto da Natureza; a falha NATURAL; o Erro.
Deus errou:
fez o homem EXACTO.

Quando Somos Felizes

– Parece-me uma grande felicidade que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que Ă© a primeira vez que o fazemos.
– É uma grande tristeza — disse ela a soluçar.
– É a maior infelicidade. Eu, quando olho para as coisas quero que elas me sejam familiares, como o meu tio e o meu marido, como o pĂŁo que se come Ă s refeiçÔes. Quero deitar-me sempre com o mesmo homem, com os mesmos lĂĄbios. Quero que os lençóis de hoje me pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam completamente diferentes. NĂŁo quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam velhos, quero que sejam os de sempre. NĂŁo me quero sobressaltar como quando era jovem. Uma pessoa sĂł pode ter paz quando estĂĄ ao pĂ© das mesmas coisas, quando nem repara nelas, porque elas jĂĄ fazem parte de si, como se as tivesse comido e mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue. SĂł somos felizes quando jĂĄ nĂŁo sentimos os sapatos nos pĂ©s.

Corpo

quantas cidades
te percorrem passo a passo
antes de entrar nos mil lares
que te aguardam
Ă© mesmo preciso usar sapatos
porque nĂŁo gastar na pedra
uma pele que se lixa longe do
tacto
dentro do ĂŽnibus os dias
viajam sentados
em meio a ombros colados
tĂșneis esgoto bichos
sorvetes coxas anĂșncios
uma criança um adulto
modelam a cidade
na areia
longe

perto do coração onde
uma cabeça gira o
mundo
correndo na grama a sombra
de quantos assistem sentados
enquanto das traves pende
o corpo de um de todos
enforcado
enquanto as orelhas ouvem
ouvem
e nĂŁo gritam
hĂĄ um fora dentro da gente
e fora da gente um dentro
demonstrativos pronomes
o tempo o mundo as pessoas
o olho

Mancebo Sem Dinheiro, Bom Barrete

Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
MedĂ­ocre o vestido, bom sapato,
Meias velhas, calção de esfola-gato,
Cabelo penteado, bom topete.

Presumir de dançar, cantar falsete,
Jogo de fidalguia, bom barato,
Tirar falsídia ao Moço do seu trato,
Furtar a carne Ă  ama, que promete.

A putinha aldeĂŁ achada em feira,
Eterno murmurar de alheias famas,
Soneto infame, sĂĄtira elegante.

Cartinhas de trocado para a Freira,
Comer boi, ser Quixote com as Damas,
Pouco estudo, isto Ă© ser estudante.

O método estoico de enfrentar as necessidades suprimindo os desejos equivale a cortar os pés para não precisar de sapatos.

Sentimento do Tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, trĂȘs ossos repousavam
Mas hĂĄ imagens que nĂŁo podia explicar; me ultrapassavam.
As lĂĄgrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrås de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais nĂŁo souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde sĂł existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas nĂŁo sei ver coisas mais simples como a ĂĄgua.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se nĂŁo houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

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