Passagens de SaĂșl Dias

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Frases, pensamentos e outras passagens de SaĂșl Dias para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

Nua

I

Nua
como Eva.
A cabeleira
beija-lhe o rosto oval e flutua;
o corpo
Ă© ĂĄgua de torrente…

Eva adolescente,
com reflexos de lua
e tons de aurora…!

Roseira que enflora…!

Desflorada por tanta gente…

II

Teu corpo,
mal o toquei…

SĂł te abracei
de leve…

Foi todo neve
o sonho que alonguei…

Asas em voo,
quem, um dia, as teve?

Os sonhos que eu sonhei!

III

Jeito de ave
e criança,
suave
como a dança
do ramo de ĂĄrvore
que o vento beija e balança!

Nave
de sonho
no temporal medonho
silvando agoiro!

Quem destrançou os teus cabelos de oiro?

IV

Corpo fino,
delicado,
sereno, sem desejos…

TĂŁo macio,
tĂŁo modelado…

Beijos… Beijos… Beijos…

V

No meu sono
ela flutua
a cada passo…

Nua,
riscando o espaço
numa nĂ©voa de outono…

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Amo-te Tanto

Amo-te tanto
nem sei porquĂȘ!
Que importa o quĂȘ
do meu espanto?

Que importa o riso
que me concedes?
Que me embebedes!
Que paraĂ­so!

Indiferente
quero-te assim.
– SĂȘ bem de mim,
de toda a gente…

Rasgou-se o véu
do temporal.
Nem bem nem mal.
Entras no céu.

Amei-te

Amei-te
porque o teu olhar numa tarde se encheu de lĂĄgrimas,
e falaste em morrer, e tremeste de medo.

Contudo
nĂŁo eras mais que uma flor corruta,
dessas que a vida enleia e usa
e depois atira para uma sarjeta lamacenta.

Mas, para mim, eras toda inocĂȘncia, toda pureza branca.
Porque a inocĂȘncia Ă© um dom de Deus,
o dom sĂł concedido
Ă queles que mais ama.
Por isso, os homens sĂł aparentemente sujam
as pequeninas rosas.

Ah! tivesse eu forças para seguir-te,
embora de longe, mas atentamente,
ajudando-te a subir o agreste calvĂĄrio!

Para Todo o Sempre

O Poeta morre,
mas nĂŁo cessa de escrever.

Enquanto escreve,
vive
ressuscitando fugidias horas
mudadas em auroras…

Uma pequenina flor,
pisada por quem passa,
Ă© agora
um milagre de cor,
uma negaça
de mil desejos…

E os beijos
que nunca foram dados,
tornados tĂŁo reais…

Aquela borboleta
arrasta
infindas primaveras
no seu voo fremente…

– Uma palavra mais,
Poeta!
Uma palavra quente!
Uma palavra para todo o sempre!

Sangue

Versos
escrevem-se
depois de ter sofrido.
O coração
dita-os apressadamente.
E a mĂŁo tremente
quer fixar no papel os sons dispersos…

É só com sangue que se escrevem versos.

JĂĄ Foste Rico e Forte e Soberano

JĂĄ foste rico e forte e soberano,
Jå deste leis a mundos e naçÔes,
Heróico Portugal, que o gram CamÔes
Cantou, como o nĂŁo pĂŽde um ser humano!

Zombando do furor do mar insano,
Os teus nautas, em fracos galeÔes,
Descobriram longínquas regiÔes,
Perdidas na amplidĂŁo do vasto oceano.

Hoje vejo-te triste e abatido,
E quem sabe se choras, ou entĂŁo,
Relembras com saudade o tempo ido?

Mas a queda fatal nĂŁo temas, nĂŁo.
Porque o teu povo, outrora tĂŁo temido,
Ainda tem ardor no coração.

MĂșsica

A doce, iriada melodia,
roxa sombra na tarde escarlate,
chorosa, ouço-a; bate
e verte quentura na minha alma fria.

Quantos anos galgaram lépidos,
furtivos, maldosos, sobre a minha cabeça!
E nĂŁo hĂĄ tempo que, hĂșmido, arrefeça
a toada suave de tons tĂ©pidos…

Remédio para as minhas feridas,
para os nervos pacĂ­fico brometo,
quando eu seguir no caixĂŁo preto,
entre velas e ladainhas,

meus ouvidos tapados a algodĂŁo
hĂŁo-de ouvi-la, tal como nessa tarde,
tĂŁo discreta, suave e sem alarde,
sobrepondo-se ao cantochĂŁo…

Um Poema

Um poema
Ă© a reza dum rosĂĄrio
imaginĂĄrio.
Um esquema
dorido.
Um teorema
que se contradiz.
Uma sĂșplica.
Uma esmola.

Dores,
vividas umas, sonhadas outras…
(InĂștil destrinçar.)

Um poema
Ă© a pedra duma escola
com palavras a giz
para a gente apagar ou guardar…

O SilĂȘncio

Peço apenas o teu silĂȘncio,
como uma criança pede uma flor
ou um velho pedinte um bocado de pĂŁo.
Um silĂȘncio
onde a tua alma se embrulha, friorenta,
trémula, à aproximação das invernias.
Um silĂȘncio com ressonĂąncias de antigas primaveras,
de outonos descoloridos
e da chuva a cair no negrume da noite.

– VĂĄ, motorista de tĂĄxi,
transporta-me
através das ruas da cidade inextricåvel,
vertiginosamente,
buzinando, buzinando,
abafando o ruĂ­do de um outro silĂȘncio!

Envelhecer

É bom envelhecer!

Sentir cair o tempo,
magro fio de areia,
numa ampulheta inexistente!

Passam casais jovens
abraçados!…

As ĂĄrvores
balançam novos ramos!…

E o fio de areia
a cair, a cair, a cair…

Todos os Dias

Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
rĂłseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas…

Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chĂĄ, de veludo…

Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres coraçÔes…

Todos os dias
nascem risos, cançÔes…

Todos os dias
os pĂĄssaros acordam
nos seus ninhos de lĂŁs…

Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhĂŁs…

Sofro de nĂŁo te Ver

Sofro
de nĂŁo te ver,
de perder
os teus gestos
leves, lestos,
a tua fala
que o sorriso embala,
a tua alma
lĂ­mpida, tĂŁo calma…

Sofro
de te perder,
durante dias que parecem meses,
durante meses que parecem anos…

Quem vem regar o meu jardim de enganos,
tratar das ĂĄrvores de tenrinhos ramos?

Poeta

– Poeta errante,
de olhar vago e distante
e azul,
o teu perfil singular
recorta-se angular
ao norte e ao sul.

– Os teus fatos coçados
bate-os o vento
e leva-os aos bocados…

E os sapatos gastos
pedem grandes repastos,
abrem bocas, esfomeados.

(Nos bolsos, imagino
asas de borboletas,
molhos de folhas secas,
poeiras e papĂ©is…)

– Poeta errante,
caem por terra os livros e a estante,
e as torres esguias das igrejas,
e as paredes velhas dos bordĂ©is!…

– Poeta errante,
vamos dormir na sombra dos vergĂ©is!…

Interrogação

Sim, preferi deixar-te,
abandonando
a dĂĄdiva de encontrar-te.

Quem eras afinal?
Qual a estrela que te guiava?
Qual a cor dos teus dias?
Qual o segredo que em ti eu tentei desvendar?

Abandonei-te.
No entanto,
na minha vida
talvez fosses o leite
capaz de me curar.

Eu nĂŁo Quero Esquecer os Dias que Viveram

Eu nĂŁo quero esquecer os dias que viveram.
Por eles escrevi estes versos mofinos;
escrevi-os Ă  tarde ouvindo rir meninos,
meninos loiro-sĂłis que bem cedo morreram.

Eu nĂŁo quero esquecer os dias que enumeram
desejos e prazeres, rezas e desatinos;
e, em loucuras ou entoando hinos,
lĂĄ na Curva da Estrada, azuis, desapareceram.

Eu nĂŁo quero esquecer dos dias mais felizes
a bĂȘnção branca-e-astral, lĂĄ das Alturas vinda,
nem tampouco o travor das horas infelizes.

Eu nĂŁo quero esquecer… Quero viver ainda
o tempo que secou, mas que deixou raĂ­zes,
e em verde volverĂĄ, e florirĂĄ ainda…

Nunca EnvelhecerĂĄs

A tua cabeleira
Ă© jĂĄ grisalha ou mesmo branca?
Para mim Ă© toda loira
e circundada de estrelas.
Sobre ela
o tempo nĂŁo poisou
o inverno dos anos
que se escoam maldosos
insinuando rugas, fios brancos…

Ao teu corpo colou-se
o vestido de seda,
como segunda pele;
entre os seios pequenos
viceja perene
um raminho de cravos…

PĂ©talas esguias
emolduram-te os dedos…
E revoadas de aves
traçam ao teu redor
volutas de primavera.

Nunca envelhecerĂĄs na minha lembrança!…

Ali

Ali sofreste. Ali amaste.
Ali Ă© a pedra do teu lar.
Ali Ă© o teu, bem teu lugar.
Ali a praça onde jogaste
o que o destino te quis dar.

Ali ficou tua pegada
impressa, firme, sobre o chĂŁo.
NinguĂ©m a vĂȘ sob o montĂŁo
de cinza fria e poeirada?
Distingue-a, sim, teu coração.

Podem talvez o vento, a neve,
roubar a flor que tu criaste?
Ali sofreste. Ali amaste.
Ali sentiste a vida breve.
Ali sorriste. Ali choraste.

A Minha Hora

Que horas sĂŁo? O meu relĂłgio estĂĄ parado,
HĂĄ quanto tempo!…
Que pena o meu relĂłgio estar parado
E eu nĂŁo poder marcar esta hora extraordinĂĄria!
Hora em que o sonho ascende, lento, muito lento,
Hora som de violino a expirar… Hora vĂĄria,
Hora sombra alongada de convento…

Hora feita de nostalgia
Dos degredados…
Hora dos abandonados
E dos que o tĂ©dio abate sem cessar…
Hora dos que nunca tiveram alegria,
Hora dos que cismam noite e dia,
Hora dos que morrem sem amar…

Hora em que os doentes de corpo e alma,
Pedem ao Senhor para os sarar…
Hora de febre e de calma,
Hora em que morre o sol e nasce o luar…
Hora em que os pinheiros pela encosta acima,
SĂŁo monges a rezar…

Hora irmĂŁ da caridade
Que dĂĄ remĂ©dio aos que o nĂŁo tĂȘm…
Hora saudade…
Hora dos Pedro Sem…
Hora dos que choram por nĂŁo ter vivido,
Hora dos que vivem a chorar alguĂ©m…

Hora dos que tĂȘm um sonho ĂĄguia mas… ai!
Águia sem asas para voar…

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