Natal
Mais uma vez, cá vimos
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, — do fundo
Da miséria que somos.Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos — não uma vez, mas cada —
Teus assassinos.À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infane.Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
Passagens sobre Sede
241 resultadosO ouro aumenta a sede do ouro, e não a estanca.
Enquanto os homens exercem seus podres poderes Morrer e matar de fome, de raiva e de sede São tantas vezes gestos naturais(…)
Pela sede de riquezas o insensato se destrói como se ele fosse o seu próprio inimigo.
Pandora
De repente,
o corpo da mulher fulgura,
pupila de deus,
punhal ou bico,
sede que chama.
Pára em mim e deslumbra
— nula possibilidade
da lucidez.
O Tempo Vive
O tempo vive, quando os homens, nele,
se esquecem de si mesmos,
ficando, embora, a contemplar o estreme
reduto de estar sendo.
O tempo vive a refrescar a sede
dos animais e do vento,
quando a estrutura estremece
a dura escuridão que, desde dentro,
irrompe. E fica com o uivo agreste
espantando o seu estrondo de silêncio.
A gente tem sede de infinito e de permanência, então, esse ser que assegura a permanência das coisas, é que eu chamo de Deus. É o absoluto.
Soneto
Se eu fosse Deus seria a vida um sonho,
Nossa existência um júbilo perene!
Nenhum pesar que o espírito envenene
Empanaria a luz do céu risonho!Não haveria mais: o adeus solene,
A vingança, a maldade, o ódio medonho,
E o maior mal, que a todos anteponho,
A sede, a fome da cobiça infrene!Eu exterminaria a enfermidade,
Todas as dores da senilidade,
E os pecados mortais seriam dez…A criação inteira alteraria,
Porém, se eu fosse Deus, te deixaria
Exatamente a mesma que tu és!
O Livro dos Amantes
I
Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.
Dai-me de beber, que tenho uma sede sem fim Olhe nos meus olhos, sou o homem-tocha Me tira essa vergonha, me liberta dessa culpa Me arranca esse ódio, me livra desse medo
O Elixir do Prazer
Que é, pois, o que se opera na alma, quando se deleita mais com as coisas encontradas ou reavidas que estima, do que se as possuísse sempre? Há, na verdade, muitos outros exemplos que o afirmam. Abundam os testemunhos que nos gritam: -«É assim mesmo!». Triunfa o general vitorioso. Mas não teria alcançado a vitória se não tivesse pelejado e quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no triunfo. A tempestade arremessa os marinheiros, ameaçando-os com o naufrágio: todos empalidecem com a morte iminente. Mas tranquilizam-se o céu e o mar, e todos exultam muito, porque muito temeram. Está doente um amigo e o seu pulso acusa perigo. Todos os que o desejam ver curado sentem-se simultaneamente doentes na alma. Melhora. Ainda não recuperou as forças antigas e já reina tal júbilo qual não existia antes, quando se achava são e forte.
Até os próprios prazeres da vida humana não se apossam do coração do homem só por desgraças inesperadas e fortuitas, mas por moléstias previstas e voluntariamente procuradas. Não há prazer nenhum no comer e beber, se o incómodo da fome e da sede o não precede. Por isso, os ébrios costumam tomar certos alimentos salgados,
Quem Diz que Amor é um Crime
Quem diz que amor é um crime
Calunia a natureza,
Faz da causa organizante
Criminosa a singeleza.Que vejo, céus! Que não seja
De uma atracção resultado?
Atracção e amor é o mesmo;
Logo amor não é pecado.Se respiro, a atmosfera,
Com um fluido combinado,
É quem me sustenta a vida
Dentro do peito agitado.Se vejo mares, se fontes,
Rio, cristalino lago,
Dois gases se unem, formando
Aguas com que a sede apago.Uma lei de afinidade
Se acha nos corpos terrenos;
Ácidos, metais, alcalis,
Tudo se une mais ou menos.De que sou feita? – De terra;
Nela me hei de converter:
Se amor arder em meu peito
É da essencia do meu ser.Sem que te ofenda razão,
Quero defender o amor;
Se contigo não concorda
Não é virtude, é furor.
Meu Amor Estou Bem (Carta)
Lanço as palavras ao papel
como pescador calmo
lança os barcos ao rio.
Só no fundo, no fundo inviolado,
contraio e espalmo
as minhas mãos, mãos de afogado
morrendo à sede.– Meu amor estou bem –
Quanto te escrevo,
ponho os olhos no teu retrato
pendurado nos ferros da minha camapara que as palavras tenham o sabor exacto
de quem me ouve,
de quem me fala,
de quem me chama.– Meu amor estou bem –
Ontem vi a Primavera
numa flor cortada dos jardins.
Hoje, tenho nos ombros uma pedra
e um punhal nos rins.– Meu amor estou bem –
Se a morte vier, querida amiga,
à minha beira, sem ninguém,
hei-de pedir-lhe que te diga:– Meu amor estou bem –
A água se ensina pela sede; A terra, por oceanos navegados; O êxtase, pela aflição; A paz, pelos combates narrados; O amor, pela cinza da memória E, pela neve, os pássaros.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita
A sede ensina a beber a todos os animais, mas a embriaguez só pertence ao homem.
O Equilíbrio na Maturidade
Recordo-me que outrora, quando tinha essa idade que se diz ser a idade do entusiasmo e da força da imaginação, como me faltava a experiência para tornar mais fortes essas belas qualidades, interrompia frequentemente o meu trabalho, que muitas vezes me desagradava. Apoisção em que a idade nos coloca é uma ironia da natureza. Quando chegamos à total maturidade, temos uma imaginação mais fesca e viva do que nunca e sobretudo sossegaram as loucas e impetuosas paixões que a idade arrasta consigo, mas faltam-nos já as forças e temos os sentidos gastos – estes pedem mais o descanso do que a agitação. E, no entanto, apesar de todas estas agruras, como é grande a consolação que nos é comunicada pelo trabalho! Como me sinto feliz por não ter de ser feliz como tanto o desejava no passado! De que selvática tirania afinal não me acabou por libertar o enfraquecimento do corpo?!
Então, a pintura era o que menos me preocupava. Temos de nos adaptar às nossas forças: se a partir de certa altura a natureza se recusa a trabalhar, não a devemos violentar mas contentarmo-nos com o que ela nos dá; não nos deixarmos dominar pela sede de elogios,
Carta de Amor
Para te dizer tão-só que te queria
Como se o tempo fosse um sentimento
bastava o teu sorriso de um outro dia
nesse instante em que fomos um momento.
Dizer amor como se fosse proibido
entre os meus braços enlaçar-te mais
como um livro devorado e nunca lido.
Será pecado, amor, amar-te demais?
Esperar como se fosse (des) esperar-te,
essa certeza de te ter antes de ter.
Ensaiar sozinho a nossa arte
de fazer amor antes de ser.
Adivinhar nos olhos que não vejo
a sede dessa boca que não canta
e deitar-me ao teu lado como o Tejo
aos pés dessa Lisboa que ele encanta.
Sentir falta de ti por tu não estares
talvez por não saber se tu existes
(percorrendo em silêncio esses altares
em sacrifícios pagãos de olhos tristes).
Ausência, sim. Amor visto por dentro,
certezas ao contrário, por estar só.
Pesadelo no meu sonho noite adentro
quando, ao meu lado, dorme o que não sou.
E, afinal, depois o que ficou
das noites perdidas à procura
de um resto de virtude que passou
por nós em co(r)pos de loucura?
Julgar sem Ira
Não há paixão que tanto abale a integridade dos julgamentos quanto a cólera. Ninguém hesitaria em punir de morte o juiz que, por cólera, houvesse condenado o seu criminoso; por que será mais permitido aos pais e aos professores açoitar as crianças e castigá-las estando encolerizados? Isso já não é correcção: é vingança. O castigo faz papel de remédio para as crianças; e toleraríamos um médico que estivesse animado e encolerizado contra o seu paciente?
Nós mesmos, para agir bem, não deveríamos pôr a mão nos nossos serviçais enquanto nos perdurar a cólera. Enquanto o pulso nos bater e sentirmos emoção, adiemos o acerto; as coisas na verdade vão parecer-nos diferentes quando estivermos calmos e arrefecidos: agora é a paixão que comanda, é a paixão que fala, não somos nós. Através dela as faltas parecem-nos maiores, como os corpos no meio do nevoeiro. Quem tiver fome faça uso de alimento; mas quem quiser fazer uso do castigo não deve sentir fome nem sede dele. E, além disso, as punições que se fazem com ponderação e discernimento são muito mais bem aceites e com melhor proveito por quem as recebe. De outra forma, ele não considera que foi condenado justamente,
A Doutrina do Objectivo da Vida
Quer considere os homens com bondade ou malevolência, encontro-os sempre, a todos e a cada um em particular, empenhados na mesma tarefa: tornar-se úteis à conservação da espécie. E isto não por amor a essa espécie, mas simplesmente porque não há neles nada mais antigo, mais poderoso, mais impiedoso e mais invencível do que esse instinto… porque esse instinto é propriamente a essência da nossa espécie, do nosso rebanho.
Se bem que se chegue assaz rapidamente, com a miopia ordinária, a separar a cinco passos os nossos semelhantes em úteis e em prejudiciais, em seres bons e maus, quando fazemos o nosso balanço final e reflectimos sobre o conjunto acabamos por desconfiar destas depurações, destas distinções, e acabamos por renunciar a elas.
Talvez o homem mais prejudicial seja ainda, no fim de contas, o mais útil à conservação da espécie; porque sustenta em si mesmo, ou nos outros, com a sua acção, instintos sem os quais a humanidade estaria há muito tempo mole e corrompida. O ódio, o prazer de prejudicar, a sede de tomar e de dominar, e, de uma maneira geral, tudo aquilo a que se dá o nome de mal, não passam no fundo de um dos elementos da espantosa economia da conservação da espécie;