Passagens sobre SilĂȘncio

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Toda esta tagarelice dos homens nĂŁo constitui uma verdadeira palavra, suporto-a para poder gozar o silĂȘncio que passa atravĂ©s dela.

InsĂłnia

NĂŁo durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insĂłnia da largura dos astros,
E um bocejo inĂștil do comprimento do mundo.

NĂŁo durmo; nĂŁo posso ler quando acordo de noite,
NĂŁo posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o Ăłpio de ser outra pessoa qualquer!

NĂŁo durmo, jazo, cadĂĄver acordado, sentindo,
E o meu sentimento Ă© um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me nĂŁo sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que nĂŁo sĂŁo nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
LĂĄ fora hĂĄ o silĂȘncio dessa coisa toda.
Um grande silĂȘncio apavorante noutra ocasiĂŁo qualquer,
Noutra ocasiĂŁo qualquer em que eu pudesse sentir.

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Noturno Do Morro Do Encanto

Este fundo de hotel Ă© um fim de mundo!
Aqui Ă© o silĂȘncio que te voz. O encanto
Que deu nome a este morro, pÔe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.

Ouço o tempo, segundo por segundo.
Urdir a lenta eternidade. Enquanto
FĂĄtima ao pĂł de estrelas sitibundo
Lança a misericórdia do seu manto.

Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que nĂŁo tem so nem cor, e eu, miserando,
NĂŁo sei mais como ouvir, nem como o diga.

Falta a morte chegar… Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que jĂĄ morri quando o que eu fui morria.

SĂł um homem de meditação pode permitir que a intimidade aconteça. Ele nĂŁo tem nada a esconder. Ele prĂłprio deixou cair tudo aquilo que o fazia ter medo de que alguĂ©m descobrisse. Ficou apenas com o silĂȘncio e um coração afectuoso.

Amei-te sem Saberes

No avesso das palavras
na contrĂĄria face
da minha solidĂŁo
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptĂ­vel crescer
como carne da lua
nos nocturnos lĂĄbios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepĂșsculo e alvorada

Para me acostumar
Ă  tua intermitente ausĂȘncia
ensinei Ă s timbilas
a espera do silĂȘncio

Escrevias pela Noite Fora

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razĂŁo das coisas,
faz de conta que nĂŁo sei as coisas que nĂŁo queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora hå prédios onde havia
laranjeiras e romĂŁs no chĂŁo e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
Ă© suficiente neste passeio. Quando nĂŁo escreves
estĂĄs a ler e ao lado das ĂĄrvores o silĂȘncio
Ă© maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. MantĂȘm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vĂ­cio. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
estĂĄ aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo.

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Velho Cego, Choravas

Velho cego, choravas quando a tua vida
era boa, e tinhas em teus olhos o sol:
mas se tens jĂĄ o silĂȘncio, o que Ă© que tu esperas,
o que Ă© que esperas, cego, que esperas da dor?

No teu canto pareces um menino que nascera
sem pés para a terra e sem olhos para o mar
como os das bestas que por dentro da noite cega
– sem dia ou crepĂșsculo – se cansam de esperar.

Porque se conheces o caminho que leva
em dois ou trĂȘs minutos atĂ© Ă  vida nova,
velho cego, que esperas, que podes esperar?

Se pela mais torpe amargura do destino,
animal velho e cego, nĂŁo sabes o caminho,
eu que tenho dois olhos to posso ensinar.

Tradução de Rui Lage

As Palavras de Amor

Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.

Deixemos que o silĂȘncio dĂȘ sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia
Dizer amar na lĂ­ngua da semente?

Amigo

1.
Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e cançÔes.

2.
Amigo – faz com que na tarde se desvaneça
este inĂștil e velho desejo de vencer.

Bebe do meu cĂąntaro se tens sede.

Amigo – faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.

Amigo,
se tens fome come do meu pĂŁo.

3.
Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verĂĄs na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelo muros direitos
– como o meu coração – sempre buscando altura.

Sorris-te – amigo. Que importa! NinguĂ©m sabe
entregar nas mĂŁos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ùnfora de suaves néctares,
e toda eu ta dou… Menos aquela lembrança…

… Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
Ă© uma rosa branca que se abre em silĂȘncio…

Tradução de Rui Lage

Soneto Com Estrambote Enviesado

Alfaiate de mim costuro a roupa
que cabe ao figurino que me coube.

SĂł meu verso protege essa amargura
desfiada de dia ao sol veloz,
para Ă  noite tecer nova textura,
novelo de silĂȘncio ao rĂ©s da voz.

Enxoval construĂ­do nessa usura
solitĂĄria de andaimes, num retrĂłs
de linha vertical, que se pendura
na pĂȘnsil teia atada, fio em foz

desse rio agulha que me costura
ao rendilhado de ĂĄguas tropicais,
que sabe de saudades no meu cais.

Viageiro de uma sanha que me traz
sempre de volta ao tear do meu destino
na seda depressiva me assassino.

O silĂȘncio Ă© como o vento: atiça os grandes mal-entendidos e sĂł extingue os pequenos.

SilĂȘncio

JĂĄ o silĂȘncio nĂŁo Ă© de oiro: Ă© de cristal;
redoma de cristal este silĂȘncio imposto.
Que lĂ­vido museu! Velado, sepulcral.
Ai de quem se atrever a mostrar bem o rosto!

Um hĂĄlito de medo embaciando o vidrado
dĂĄ-nos um estranho ar de fantasmas ou fetos.
Na silente armadura, e sobre si fechado,
ninguém sonha sequer sonhar sonhos completos.

TĂŁo mal consegue o luar insinuar-se em nĂłs
que a prĂłpria voz do mar segue o risco de um disco…
NĂŁo cessa de tocar; nĂŁo cessa a sua voz.
Mas jĂĄ ninguĂ©m pretende exp’rimentar-lhe o risco!

Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente

Escrevi atĂ© o princĂ­pio da manhĂŁ aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofĂĄ grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pĂȘlo dos gatos. O sol a chegar Ă  escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas pĂĄginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lĂĄbios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silĂȘncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhĂĄ-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercĂ­cio, conseguia escrever duas palavras ou, no mĂĄximo, uma frase. Quando a manhĂŁ apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhĂĄ-la. Adormeci com ela dentro de mim.

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,

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Testamento do Homem Sensato

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: «Ele era assim…»
mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se, um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silĂȘncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
com uma luz, mais que distante, breve.

A Cavalgada

A lua banha a solitĂĄria estrada…
SilĂȘncio!… mas alĂ©m, confuso e brando,
O som longĂ­nquo vem se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
VĂȘm alegres, vĂȘm rindo, vĂȘm cantando,
E as trompas a soar vĂŁo agitando
O remanso da noite embalsamada…

E o bosque estala, move-se, estremece…
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se apĂłs no centro da montanha…

E o silĂȘncio outra vez soturno desce,
E lĂ­mpida, sem mĂĄcula, alvacenta
A lua a estrada solitĂĄria banha…

Censura e Criatividade

Dos dĂ©spotas provĂȘm, atĂ© certo ponto, os pensadores. A palavra acorrentada Ă© terrĂ­vel. O escritor duplica e triplica o seu estilo, quando um senhor impĂ”e silĂȘncio ao povo. Sai desse silĂȘncio certa plenitude misteriosa que se filtra e se condensa em bronze no pensamento. A compreensĂŁo na histĂłria produz a concisĂŁo no historiador. A solidez granĂ­tica de tal ou tal prosa cĂ©lebre nĂŁo Ă© mais do que um amontoamento feito por um tirano.
A tirania constrange o escritor a circunscriçÔes de diĂąmetro, que sĂŁo alargamentos de força. O perĂ­odo ciceroniano, apenas suficiente para Verres, sobre CalĂ­gula embotar-se-ia. Quanto menor for a exuberĂąncia da frase, maior serĂĄ a intensidade do golpe. Sirva de exemplo a concisĂŁo de TĂĄcito no exprimir e a sua veemĂȘncia no pensar. A honestidade de um grande coração, condensada em justiça e em verdade, fulmina.

CĂĄrcere Das Almas

Ah! Toda a alma num cĂĄrcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhÔes as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisÔes colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silĂȘncios solitĂĄrios, graves,
que chaveiro do CĂ©u possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!