Passagens sobre SilĂȘncio

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InvulnerĂĄvel

Quando dos carnavais da raça humana
Forem caindo as mĂĄscaras grotescas
E as atitudes mais funambulescas
Se desfizerem no feroz Nirvana;

Quando tudo ruir na febre insana,
Nas vertigens bizarras, pitorescas
De um mundo de emoçÔes carnavalescas
Que ri da FĂ© profunda e soberana,

Vendo passar a lĂșgubre, funĂ©rea
Galeria sinistra da Miséria,
Com as mĂĄscaras do rosto descoladas,

Tu que Ă©s o deus, o deus invulnerĂĄvel,
Reseiste a tudo e fica formidĂĄvel,
No SilĂȘncio das nooites estreladas!

Retrato Ardente

Entre os teus lĂĄbios
Ă© que a loucura acode
desce Ă  garganta,
invade a ĂĄgua.

No teu peito
Ă© que o pĂłlen do fogo
se junta Ă  nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
Ă© que a areia queima,
o sol Ă© secreto,
cego o silĂȘncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lĂĄbios e lĂĄbios
toda a mĂșsica Ă© minha.

A Segurança Destas Paralelas

A segurança destas paralelas
— a beira da varanda e o horizonte;
assim me pacifico, e Ă© por elas
que subo lentamente cada monte.

O tempo arrefecido, e sĂł soprado
por uma brisa tarda que do mar
torna este minuto leve aconchegado,
traz mansas as certezas de se estar.

E vĂȘm novos nomes: sĂŁo as fadas,
gigantes e anÔes, que são assim
alegres de o serem — parcos nadas

que enchendo de silĂȘncios este sim
dele fazem brinquedos, madrugadas…
Agora eu estou em ti e tu em mim.

Escutem esse silĂȘncio, o grandioso ruĂ­do que ele carrega; e nĂŁo serve de nada cobrir as orelhas.

Quatro Sonetos De Meditação – IV

Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonùmbulo e sem fim.

Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como Ă­mĂŁs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensĂŁo e sem razĂŁo me leva
Para o silĂȘncio onde o SilĂȘncio dorme

Enorme. E como o mar denro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.

Desculpe, amor, se meu presente Ă© meio louco e bobo e superado: uns lĂĄbios em silĂȘncio (a mĂșsica mental) e uns olhos em recesso (a infinita paisagem).

Paisagem

Dorme sob o silĂȘncio o parque. Com descanso,
Aos haustos, aspirando o finĂ­ssimo extrato
Que evapora a verdura e que deleita o olfato,
Pelas alas sem fim da årvores avanço.

Ao fundo do pomar, entre folhas, abstrato
Em cismas, tristemente, um alvĂ­ssimo ganso
Escorrega de manso, escorrega de manso
Pelo claro cristal do lĂ­mpido regato.

Nenhuma ave sequer, sobre a macia alfombra,
Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece
A campina, a rechĂŁ sob a noturna sombra.

E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas
Selvas a dentro entrando, a noite desce, desce…
E espalham-se no cĂ©u camandulas de estrelas…

Ouve-me, ouve o meu silĂȘncio. O que falo nunca Ă© o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma nĂŁo posso.

OfĂ­cio de Amar

jĂĄ nĂŁo necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grĂŁo doente das cidades erguidas no princĂ­pio doutras
[galĂĄxias, e
[o remorso

um dia pressenti a mĂșsica estelar das pedras, abandonei-me ao silĂȘncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
nĂŁo, nĂŁo preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuråveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponĂ­vel, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade de meu prĂłprio corpo

Um Povo Resignado e Dois Partidos sem Ideias

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambĂșzio, fatalista e sonĂąmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misĂ©rias, sem uma rebeliĂŁo, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem jĂĄ com as orelhas Ă© capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, nĂŁo se lembrando nem donde vem, nem onde estĂĄ, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e Ă© bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciĂȘncia como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silĂȘncio escuro de lagoa morta. [.]

Uma burguesia, cĂ­vica e politicamente corrupta atĂ© Ă  medula, nĂŁo descriminando jĂĄ o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carĂĄcter, havendo homens que, honrados na vida Ă­ntima, descambam na vida pĂșblica em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infĂąmia, da mentira a falsificação, da violĂȘncia ao roubo, donde provem que na polĂ­tica portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escĂąndalos monstruosos, absolutamente inverosĂ­meis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregĂŁo de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unĂąnime do PaĂ­s.

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A indiferença a propĂłsito de um princĂ­pio equivale, com efeito, Ă  negação deste princĂ­pio, e nĂŁo raras vezes o silĂȘncio pesa mais que o erro.

Um Pouco Mais de NĂłs

Podes dar uma centelha de lua,
um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que Ă©s e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silĂȘncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma mĂșsica sĂł tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dĂĄdiva
ao hĂșmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relĂłgio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serĂĄs ainda mais,
anĂłnimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
Ă© dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horĂĄrio,
que a mĂĄxima recompensa de quem dĂĄ
Ă© o jĂșbilo de um gesto voluntĂĄrio.

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Requiem por Muitos Maios

Conheci tipos que viveram muito. EstĂŁo
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de ålcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem Ă  sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde sĂł os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lĂĄgrimas e silĂȘncios. Encostei-me
Ă  palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marĂ­tima caĂ­a-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito –

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