Passagens sobre SilĂȘncio

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Adormecer

O barco parte em silĂȘncio
a alma Ă© aventura
navegar
sem cartas          sem rumo
e desta viagem nocturna
que notĂ­cias nĂŁo direi sequer a mim
[mesmo?

Vida verdadeira Ă© como a ĂĄgua: em silĂȘncio se adapta ao nĂ­vel inferior, que os homens desprezam.

Viver o Hoje

Nunca a vida foi tĂŁo actual como hoje: por um triz Ă© o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matĂ©ria. O apodrecimento do que Ă© orgĂąnico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo nĂŁo existe. O que chamamos de tempo Ă© o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si nĂŁo existe. Ou existe imutĂĄvel e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida Ă© tĂŁo curta. EntĂŁo — para que eu nĂŁo seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tĂ©dio. Degusto assim cada detestĂĄvel minuto. E cultivo tambĂ©m o vazio silĂȘncio da eternidade da espĂ©cie. Quero viver muitos minutos num sĂł minuto. Quero me multiplicar para poder abranger atĂ© ĂĄreas desĂ©rticas que dĂŁo a idĂ©ia de imobilidade eterna. Na eternidade nĂŁo existe o tempo. Noite e dia sĂŁo contrĂĄrios porque sĂŁo o tempo e o tempo nĂŁo se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje Ă© hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado.

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Hora MĂ­stica

Noite caindo … CĂ©u de fogo e flores.
Voz de CrepĂșsculo exalando cores,
O céu vai cheio de Deus e de harmonia.
SilĂȘncio … Eis-me rezando aos fins do dia.

NĂ©voa de luz criando imagens na ĂĄgua,
Nome das åguas esculpindo os céus,
Tarde aos relevos hĂșmidos de frĂĄgua,
Boca da noite, eis-me rezando a Deus.

Eis-me entoando, a voz de cinza e ouro,
— Oh, cores na água vindo às mãos em branco! —
Minha Ăłpera de Sol ao Ășltimo arranco.

E, oh! hora mĂ­stica em que o olhar abraso,
— Sol expirando aos Pórticos do Ocaso! —
Dobra em meu peito um oceano em coro.

Ser Dos Seres

No teu ser de silĂȘncio e d’esperança
A doce luz das AmplidÔes flameja.
Ele sente, ele aspira, ele deseja
A grande zona da imortal Bonança.

Pelos largos espaços se balança
Como a estrela infinita que dardeja,
Sempre isento da Treva que troveja
O clamor inflamado da Vingança.

Por entre enlevos e deslumbramentos
Entra na Força astral dos Sentimentos
E do Poder nos mĂĄgicos poderes.

E traz, embora os íntimos cansaços,
Ânsias secretas para abrir os braços
Na generosa comunhĂŁo dos Seres!

Faço perguntas Ă s minhas prĂłprias dĂșvidas e lembro-me de um filme antigo quando percebo que nĂŁo respondem: silĂȘncio a preto e branco.

LV

Em profundo silĂȘncio jĂĄ descansa
Todo o mortal; e a minha triste idéia
Se estende, se dilata, se recreia
Pelo espaçoso campo da lembrança.

Fatiga-se, prossegue, em vĂŁo se cansa;
E neste vĂĄrio giro, em que se enleia,
Ao duvidoso passo jĂĄ receia,
Que lhe possa faltar a segurança.

Que diferente tudo estĂĄ notando!
Que perplexo as imagens do perdido
Num e noutro despojo vem achando!

Este nĂŁo Ă© o templo (eu o duvido)
Assim o afirma, assim o estĂĄ mostrando:
Ou morreu Nise, ou este nĂŁo Ă© Fido.

O que se Ă© Vem Ă  Flor?

“NĂŁo, nĂŁo digas nada” Fernando Pessoa

Melhor seria nĂŁo dizer-te nada
jĂĄ que as palavras se frustram, Pessoa
– ai! onde as pĂĄs sutis e as virgens lavras
do ver de terna fala entre as criaturas?
JĂĄ que as palavras nos frustram, pessoas
perdidas no universo das palavras
– ai tempos de durames sem ternuras! –
melhor seria nĂŁo dizer-te nada.
Calo. Do teu silĂȘncio aflora a fala
desse verde essencial – cerne, mensagem,
viva raiz-mistério da linguagem.
Na força de não ter dito o que mais cala.

A Morte que Trazemos no Coração

É no coração que morremos. É aí que a morte habita.

Nem sempre nos damos conta que a carregamos connosco, mas, desde que somos vida, ela segue-nos de perto. Enquanto nĂŁo somos tomados pela nossa, vamos assistindo e sentindo, em ritmo crescente ao longo da vida, Ă s mortes de quem nos Ă© querido. A morte de um amigo Ă© como uma amputação: perdemos uma parte de nĂłs; uma fonte de amor; alguĂ©m que dava sentido Ă  nossa existĂȘncia… porque despertava o amor em nĂłs.

Mas não hå sabedoria alguma, cultura ou religião, que não parta do princípio de que a realidade é composta por dois mundos: um, a que temos acesso direto e, outro, que não passa pelos sentidos, a ele se chega através do coração. Contudo, o visível e o invisível misturam-se de forma misteriosa, ao ponto de se confundirem e, como alguns chegam a compreender, não serem jå dois mundos, mas um só.
Só as pessoas que amamos morrem. Só a sua morte é absoluta separação. Os estranhos, com vidas com as quais não nos cruzamos, não morrem, porque, para nós, de facto, não chegam sequer a ser.

SĂł as pessoas que amamos nĂŁo morrem.

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Namorados do Mirante

Eles eram mais antigos que o silĂȘncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas sĂșbitas estĂĄtuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
A Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substĂąncia, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espĂ©cie — tudo mais tinha morrido.
CaĂ­am lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galĂĄxias da vida no infinito.

Eles eram mais antigos que o silĂȘncio…

ExĂ­lio

Dentro de cada rosto vai-se
e perde o passo antes certo
que nĂŁo se quisera passo, mas silĂȘncio.

Se em vĂŁo caminha e nada encontra,
um rosto e cada ruga, cada cancro
conferem o périplo e o decretam
desde sempre, nas frias manhĂŁs do tempo, nulo.

MĂĄrmores, fĂĄtua memĂłria de um crime,
ou qualquer mĂșsica degredada em pranto,
nada falta, mas fasta, imĂłvel, sucessiva
uma lua basta e sua lousa, desterro.

Letras, pedras, fomes, por entre grades paisagem
ou rosto informe no fundo de uma pĂĄgina,
vai a viagem ontem e esquece, urro ou simples erro.

Algumas Coisas

A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
sĂł a memĂłria do esquecimento de tudo;
tambĂ©m o silĂȘncio de aquele que fala se calarĂĄ.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber Ă© esquecer, e
esta Ă© a sabedoria e o esquecimento.

SilĂȘncio!

No fadĂĄrio que Ă© meu, neste penar,
Noite alta, noite escura, noite morta,
Sou o vento que geme e quer entrar,
Sou o vento que vai bater-te Ă  porta…

Vivo longe de ti, mas que me importa?
Se eu jĂĄ nĂŁo vivo em mim! Ando a vaguear
Em roda Ă  tua casa, a procurar
Beber-te a voz, apaixonada, absorta!

Estou junto de ti e nĂŁo me vĂȘs…
Quantas vezes no livro que tu lĂȘs
Meu olhar se pousou e se perdeu!

Trago-te como um filho, nos meus braços!
E na tua casa…Escuta!…Uns leves passos…
SilĂȘncio, meu Amor!…Abre! Sou eu!…

Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lĂĄ para trĂĄs de onde jazo, o silĂȘncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair.

A Festa do SilĂȘncio

Escuto na palavra a festa do silĂȘncio.
Tudo estĂĄ no seu sĂ­tio. As aparĂȘncias apagaram-se.
As coisas vacilam tĂŁo prĂłximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura Ă© o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
RelaçÔes, variaçÔes, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada Ă© inacessĂ­vel no silĂȘncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia hĂĄ uma fonte de ĂĄgua clara.
Se digo ĂĄrvore a ĂĄrvore em mim respira.
Vivo na delĂ­cia nua da inocĂȘncia aberta.