Lacrimae Rerum
Noite, irmĂŁ da RazĂŁo e irmĂŁ da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!Aonde são teus sóis, como corte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vĂŁo busca a certeza que o conforte?Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas…É tudo, em torno a mim, dĂşvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas…
Sonetos de Antero de Quental
87 resultadosVoz Interior
(A JoĂŁo de Deus)
Embebido n’um sonho doloroso,
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando n’um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso…Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachões,
AtravĂ©s d’uma luz de exalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso…Um ai sem termo, um trágico gemido
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrĂvel, monĂłtono vaivĂ©m…SĂł no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!
Contemplação
Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imĂłvel das essĂŞncias,
Entre idĂ©ias e espĂritos pairando…Que Ă© o mundo ante mim? fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existĂŞncias…
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando…E d’entre a nĂ©voa e a sombra universais
SĂł me chega um murmĂşrio, feito de ais…
É a queixa, o profundĂssimo gemidoDas coisas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim sĂł presentido…
MĂŁe…
Mãe — que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mĂŁos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido…Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sĂtio mais sombrio…
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido…Eu dava o meu orgulho de homem — dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava.Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mĂŁe!
Quia Aeternus
(A Joaquim de AraĂşjo)
NĂŁo morreste, por mais que o brade Ă gente
Uma orgulhosa e vĂŁ filosofia…
NĂŁo se sacode assim tĂŁo facilmente
O jugo da divina tirania!Clamam em vĂŁo, e esse triunfo ingente
Com que a Razão — coitada! — se inebria,
É nova forma, apenas, mais pungente,
Da tua eterna, trágica ironia.Não, não morreste, espectro! o Pensamento
Como d’antes te encara, e Ă©s o tormento
De quantos sobre os livros desfalecem.E os que folgam na orgia Ămpia e devassa
Ai! quantas vezes ao erguer a taça,
Param, e estremecendo, empalidecem!
Ignotus
(A Salomão Sáragga)
Onde te escondes? Eis que em vĂŁo clamamos,
Suspirando e erguendo as mĂŁos em vĂŁo!
Já a voz enrouquece e o coração
Está cansado — e já desesperamos…Por cĂ©u, por mar e terras procuramos
O EspĂrito que enche a solidĂŁo,
E sĂł a prĂłpria voz na imensidĂŁo
Fatigada nos volve… e nĂŁo te achamos!CĂ©us e terra, clamai, aonde? aonde? —
Mas o EspĂrito antigo sĂł responde,
Em tom de grande tédio e de pesar:— Não vos queixeis, ó filhos da ansiedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
TambĂ©m me busco a mim… sem me encontrar!
IdĂlio
Quando nĂłs vamos ambos, de mĂŁos dadas,
Colher nos vales lĂrios e boninas,
E galgamos dum fĂ´lego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruĂnas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:Quantas vezes, de sĂşbito, emudeces!
NĂŁo sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalidecesO vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.