A AntĂ´nio Nobre
Tu que penaste tanto e em cujo canto
Há a ingenuidade santa do menino;
Que amaste os choupos, o dobrar do sino,
E cujo pranto faz correr o pranto:Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino,
A esmorecer e desejando tanto…Mas tu dormiste em paz como as crianças.
Sorriu a Glória às tuas esperanças
E beijou-te na boca… O lindo som!Quem me dará o beijo que cobiço?
Foste conde aos vinte anos… Eu, nem isso…
Eu, não terei a Glória… nem fui bom.
Sonetos sobre Ar
156 resultadosFuga
Amo um lugar assim, amo os lugares
onde há montanhas, selvas, passarinhos…
– onde o giz alvacento dos luares,
à noite, faz rabiscos de caminhos…Que bom ficarmos sempre assim, sozinhos…
quantas coisas depois, para lembrares!
Esta calma varanda… os meus carinhos…
Um silêncio… que é música, nos ares…A porteira lá embaixo… a estrada, o fim…
Ah! Se pudéssemos nos esquecer
para onde segue aquela estrada, assim…Ah! Se pudéssemos pensar que aquela
estrada , ali adiante vai morrer…
– Como a vida, meu Deus, seria bela!
As Razões
Quando passas por mim depressa, indiferente,
e não me dás sequer, um sorriso… um olhar…
– como um vulto qualquer, em meio a tanta gente
que costuma nos ver sem nunca nos notar…Quando passa assim, distraĂda, nesse ar
de quem sĂł sabe andar olhando para frente,
e finges não me ver, e avanças sem voltar
o rosto… e vais seguindo displicentemente…– eu penso com tristeza em tua hipocrisia…
Ninguém sabe que a tive ao meu amor vencida
e que um dia choraste… e que choraste um dia…Mas para que contar? Que sejas sempre assim,
e que ninguém descubra nunca em tua vida
as razões por que passas sem olhar pra mim!…
Sonho Oriental
Sonho-me às vezes rei, n’alguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha…O aroma da magnólia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente…
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha…E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto n’um cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descanças debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.
Sobresalto
Quantas horas passava contemplando
Seu pequenino Vulto. Era um Anjinho
Dentro de nossa casa, abençoando…
Era uma Flôr, um Astro, um Amorzinho.Um dia, em que ele, ao pé de mim, sósinho
Brincava, estes meus olhos inundando
De graça, de inocencia e de carinho,
De tudo o que Ă© celeste, alegre e brando,Vi tremer sua Imagem, de repente,
No ar, como se fôra Aparição.
E para mim eu disse tristemente:“Pertences a outro mundo, a um céu mais alto;
Partirás dentro em breve.” E desde então
Eu fiquei num constante sobresalto!
Otelo
Quem minha angĂşstia suportar, prefira
a morte, redentora, Ă desventura
de nĂŁo poder, nas vascas da loucura,
distinguir a verdade da mentira.Infrene dúvida, implacável ira,
esta que me alucina e me tortura!
– Ter ciúmes da luz, formosa e pura,
do chĂŁo, da sombra e do ar que se respira!Invejo a veste que te esconde! a espuma
que, beijando teu corpo, linha a linha,
toda do teu aroma se perfuma!Amo! E o delĂrio desta dor mesquinha,
faz que eu deseje ser tu mesma, em suma,
para ter a certeza de que Ă©s minha!
Soneto De Maio
Suavemente Maio se insinua
Por entre os véus de Abril, o mês cruel
E lava o ar de anil, alegra a rua
Alumbra os astros e aproxima o céu.Até a lua, a casta e branca lua
Esquecido o pudor, baixa o dossel
E em seu leito de plumas fica nua
A destilar seu luminoso mel.Raia a aurora tĂŁo tĂmida e tĂŁo fragil
Que através do seu corpo tranparente
Dir-se-ia poder-se ver o rostoCarregado de inveja e de presságio
Dos irmĂŁos Junho e Julho, friamente
Preparando as catástrofes de Agosto…
Soneto Monossilábico
Vo
gar
Ro
larO
ar
do
larna
flor
hápor
A-
mor
No Mundo Poucos Anos, E Cansados
No mundo poucos anos, e cansados,
vivi, cheios de vil miséria dura;
foi-me tĂŁo cedo a luz do dia escura,
que nĂŁo vi cinco lustros acabados.Corri terras e mares apartados
buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, nĂŁo quer ventura,
não o alcançam trabalhos arriscados.Criou-me Portugal na verde e cara
pátria minha Alenquer; mas ar corruto
que neste meu terreno vaso tinha,me fez manjar de peixes em ti, bruto
mar, que bates na Abássia fera e avara,
tão longe da ditosa pátria minha!
CrepĂşsculo
Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Batendo as asas leves, irisadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lĂrios roxos e dolentes…E os lĂrios fecham… Meu Amor, nĂŁo sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mĂŁos sĂŁo maceradas
Como vagas saudades de doentes…O Silêncio abre as mãos… entorna rosas…
Andam no ar carĂcias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando…E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando…
Chopin
Não se acende hoje a luz…Todo o luar
Fique lá fora.Bem Aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!Entram falenas meio entontecidas…
Lusco-fusco…um morcego a palpitar
Passa…torna a passar…torna a passar…
As coisas têm o ar de adormecidas…Mansinho…Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim da escuridão da sala…
Exortação
Corpo crivado de sangrentas chagas,
Que atravessas o mundo soluçando,
Que as carnes vais ferindo e vais rasgando
Do fundo d’Ilusões velhas e vagas.Grande isolado das terrestres plagas,
Que vives as Esferas contemplando,
Braços erguidos, olhos no ar, olhando
A etérea chama das Conquistas magas.Se é de silêncio e sombra passageira,
De cinza, desengano e de poeira
Este mundo feroz que te condena,Embora ansiosamente, amargamente
Revela tudo o que tu’alma sente
Para ela entĂŁo poder ficar serena!
Paisagem Ăšnica
Olhas-me tu: e nos teus olhos vejo
Que eu sou apenas quem se vĂŞ: assim
Tu tanto me entregaste ao teu desejo
Que Ă© nos teus olhos que eu me vejo a mim.Em ti, que bem meu corpo se acomoda!
Ah! quanto amor por os teus olhos arde!
Contigo sou? — perco a paisagem toda…
Longe de ti? — sou como um dobre à tarde…Adeuses aos casais dessas Marias
Em cuja graça o meu olhar flutua,
Tudo o que amei ao teu amor o entrego.Choupos com ar de velhas Senhorias,
Castelo moiro donde nasce a Lua,
E apenas tu, a tudo o mais sou cego.
Cheiro De Espádua
“Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixĂŁo, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essĂŞncia dela!Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciĂşme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que Ă luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!”
Os Dias Conto, e cada Hora, e Momento
Os dias conto, e cada hora, e momento
qu’ alongando-me vou dos meus amores.
Nas árvores, nas pedras, ervas, flores,
parece que acho mágoa, e sentimento.As aves que no ar voam, o sol, e o vento,
montes, rios, e gados, e pastores,
as estradas, e os campos, mostram as dores
da minha saudade, e apartamento.E quanto m’era lá doce, e suave,
mais triste, e duro Amor cá mo apresenta,
a que entreguei da minha vida a chave.Em lágrimas força é qu’ as faces lave,
ou que nĂŁo sinta a dor que na tormenta
memória da bonança faz mais grave.
Bom Dia, Amigo Sol!
Bom dia, amigo Sol! A casa Ă© tua!
As bandas da janela abre e escancara,
– deixa que entre a manhã sonora e clara
que anda lá fora alegre pela rua!Entre! Vem surpreendê-la quase nua,
doura-lhe as formas de beleza rara…
Na intimidade em que a deixei, repara
Que a sua carne é branca como a Lua!Bom dia, amigo Sol! É esse o meu ninho…
Que nĂŁo repares no seu desalinho
nem no ar cheio de sombras, de cansaços…Entra! Só tu possuis esse direito,
– de surpreendê-la, quente dos meus braços,
no aconchego feliz do nosso leito!…
Renascimento
A Alma nĂŁo fica inteiramente morta!
Vagas Ressurreições do Sentimento
Abrem já, devagar, porta por porta,
Os palácios reais do Encantamento!Morrer! Findar! Desfalecer! que importa
Para o secreto e fundo movimento
Que a alma transporta, sublimiza e exorta,
Ao grande Bem do grande Pensamento!Chamas novas e belas vĂŁo raiando,
VĂŁo se acendendo os lĂmpidos altares
E as almas vĂŁo sorrindo e vĂŁo orando…E pela curva dos longĂnquos ares
Ei-las que vĂŞm, como o imprevisto bando
Dos albatrozes dos estranhos mares…
Amor Vivo
Amar! mas d’um amor que tenha vida…
NĂŁo sejam sempre tĂmidos harpejos,
NĂŁo sejam sĂł delirios e desejos
D’uma douda cabeça escandecida…Amor que vive e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser — e não só beijos
Dados no ar — delĂrios e desejos —
Mas amor… dos amores que têm vida…Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipa-lo nos meus braços
Como névoa da vaga fantasia…Nem murchará do sol á chama erguida…
Pois que podem os astros dos espaços
Contra débeis amores… se têm vida?
Abnegação
Chovam lĂrios e rosas no teu colo!
Chovam hinos de glĂłria na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
Meu amor, minha pomba e meu consolo!Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
Cantos e aroma o ar e sombra a palmar.
E quando surge a lua e o mar se acalma,
Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!E nem sequer te lembres de que eu choro…
Esquece até, esquece, que te adoro…
E ao passares por mim, sem que me olhes,Possam das minhas lágrimas cruéis
Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Que pises distraĂda ou rindo esfolhes!
Estar Assim, Assente na Saudade
Estar assim, assente na saudade,
com todo o peso repousando em si,
a prende Ă luz da sua antiguidade
parando na de aqui.Concentra-se na sua densidade.
A tarde, Ă volta, ilustra no perfil
uma penumbra de profundidade
de onde o azul aviva a luz de Abril.E a juventude adensa-se na tarde.
Agrava, ao lume duma paz antiga,
o modelado meditar. O ar deestar ao centro de um amor que diga
quanto está perto da sua eternidade
este toque de luz na rapariga.