Sonetos sobre Ar de Fernando Pessoa

5 resultados
Sonetos de ar de Fernando Pessoa. Leia este e outros sonetos de Fernando Pessoa em Poetris.

Quando Olho Para Mim NĂŁo Me Percebo.

Quando olho para mim nĂŁo me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio Ă s vezes ao sair
Das próprias sensaçÔes que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensaçÔes que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensaçÔes sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Qual É A Tarde Por Achar

Qual Ă© a tarde por achar
Em que teremos todos razĂŁo
E respiraremos o bom ar
Da alameda sendo verĂŁo,

Ou, sendo inverno, baste ‘star
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual Ă© a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora nĂŁo.

Qual Ă© a mĂŁo cariciosa
Que hĂĄ de ser enfermeira minha –
Sem doenças minha vida ousa –

Oh, essa mĂŁo Ă© morta e osso …
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.

Barrow-On-Furness III

Corre, raio de rio, e leva ao mar
A minha indiferença subjetiva!
Qual “leva ao mar”! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?

Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que nĂŁo se ativa,
Morre a pĂŽr etiquetas ao grande ar…

Escancarado Furness, mais trĂȘs dias
Te, aturarei, pobre engenheiro preso
A sucessibilĂ­ssimas vistorias…

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo
(E tu irĂĄs do mesmo modo que ias),
Qualquer, na gare, de cigarro aceso…

Rala Cai Chuva. O Ar Não É Escuro. A Hora

Rala cai chuva. O ar nĂŁo Ă© escuro. A hora
Inclina-se na haste; e depois volta.
Que bem a fantasia se me solta!
Com que vestĂ­gios me descobre agora!

TĂ©dio dos interstĂ­cios, onde mora
A fazer de lagarto. – O muro escolta
A minha eterna angĂșstia de revolta
E esse muro sou eu e o que em mim chora.

NĂŁo digas mais, pois te ignorei cativo…
Teus olhos lembram o que querem ser,
MurmĂșrio de ĂĄguas sobre a praia, e o esquivo

Langor do poente que me faz esquecer.
Que real que Ă©s! Mas eu, que vejo e vivo,
Perco-te, e o som do mar faz-te perder.

Como uma Voz de Fonte que Cessasse

Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vĂŁos olhares
Se admiraram), p’ra alĂ©m dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou… Apareceu jĂĄ sem disfarce
De mĂșsica longĂ­nqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce…

A paisagem longĂ­nqua sĂł existe
Para haver nela um silĂȘncio em descida
P’ra o mistĂ©rio, silĂȘncio a que a hora assiste…

E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde hĂĄ a vida…
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo…