Sonetos sobre Bem de Cruz e Souza

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Sonetos de bem de Cruz e Souza. Leia este e outros sonetos de Cruz e Souza em Poetris.

Na Fonte

Bem ao lado da gruta a fonte corre
Trepidamente, as águas encrespando,
Em murmĂşrios crebos, levantando
Uns chamalotes prateados — morre

No monte o sol que a luz no oceano escorre
E ainda eu vejo, as sombras afrontando,
Uma mulher que lava, mesmo quando
O sol mais rubro, mais vermelho jorre.

— É num sĂ­tio afastado, um sĂ­tio ermo…
Pássaros cortam vastidões sem termo,
Borboletas azuis roçam nas águas.

— E a mulher lava, enrubescida a face;
Lava, cantando, como se lavasse
As suas tristes e profundas mágoas.

Voz Fugitiva

Ă€s vezes na tu’alma que adormece
Tanto e tĂŁo fundo, alguma voz escuto
De timbre emocional, claro, impoluto
Que uma voz bem amiga me parece.

E fico mudo a ouvi-la como a prece
De um meigo coração que está de luto
E livre, já, de todo o mal corruto,
Mesmo as afrontas mais cruéis esquece.

Mas outras vezes, sempre em vĂŁo, procuro
Dessa voz singular o timbre puro,
As essências do céu maravilhosas.

Procuro ansioso, inquieto, alvoroçado,
Mas tudo na tu’alma está calado,
No silĂŞncio fatal das nebulosas.

É Delicada, Suave, Vaporosa

É delicada, suave, vaporosa,
A grande atriz, a singular feitura…
É linda e alva como a neve pura,
DĂ©bil, franzina, divinal, nervosa!…

E d’entre os lábios setinais, de rosa
Libram-se pĂ©rolas de nitente alvura…
E doce aroma de sutil frescura
Sai-lhe da leve compleição mimosa!…

Quando aparece no febril proscĂŞnio
Bem como os mitos do passado, ingentes,
Bem como um astro majestoso, helĂŞnio…

Sente-se n’alma as atrações potentes
Que sĂł se operam ao fulgor do gĂŞnio,
As rubras chispas ideais, ferventes!…

DIATRIBE

Dois zoilos mui completos deste mundo,
Dois zoilos há terríveis e zelosos,
Que estando sem fazer, mui ociosos
SĂł tratam dum falar nauseabundo.

Eu sei mui bem seus nomes — nĂŁo confundo
Com esses bem sensatos, talentosos,
Com esses lidadores mui briosos
Que tĂŞm estudo imenso e bem profundo!

Mas ah! pra que tempo hei-de gastar
Com quem sĂł vive imerso na caligem
D’inveja torpe e vil a esbravejar!

Isto, meus amigos, Ă© impigem
Que quanto se procura mais coçar
Tanto e tanto mais só dá prurigem!

Imaginai Um Misto De Alvoradas

Imaginai um misto de alvoradas
Assim com uns vagos longes de falena,
Ou mesmo uns quês suaves de açucena
C’os magos prantos bons das madrugadas!…

Imaginai mil cousas encantadas…
O tímido dulçor da tarde amena,
As esquisitas graças de uma Helena,
As vaporosas noites estreladas…

Que encontrareis entĂŁo em Julieta
O tipo sĂŁo, fiel da Georgeta
Nos dois brilhantes, primorosos atos!…

E sentireis um fluido magnético
Trêmulo, nervoso, mórbido, patético,
Bem como a voz dos langues psicattos!…

Cega

Parece-me que a luz imaculada
Que vem do teu olhar, todo doçuras,
NĂŁo verte no meu ser aquelas puras
Delícias de outra era já passada.

Eu creio que essa pálpebra adorada
NĂŁo mais um flĂłreo empĂ­reo de venturas
Descobre-me — na noite de amarguras,
De dúvidas intérminas cortada.

NĂŁo olhas como olhavas, rindo, outrora,
NĂŁo abres a pupila, como a aurora
Nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.

A sombra, nos teus olhos, funda, existe!…
Tu’alma deve ser bem negra e triste
Se os olhos sĂŁo, decerto, o espelho d’alma.

25 De Março

25 DE MARÇO
(Recife, 1885)
Em Pernambuco para o Ceará

Bem como uma cabeça inteiramente nua
De sonhos e pensar, de arroubos e de luzes,
O sol de surpreso esconde-se, recua,
Na Ăłrbita traçada — de fogo dos obuses.

Da enérgica batalha estóica do Direito
Desaba a escravatura — a lei cujos fossos
Se ergue a consciĂŞncia — e a onda em mil destroços
Resvala e tomba e cai o branco preconceito.

E o Novo Continente, ao largo e grande esforço
De gerações de herĂłis — presentes pelo dorso
Ă€ rubra luz da glĂłria — enquanto voa e zumbe.

O inseto do terror, a treva que amortalha,
As lágrimas do Rei e os bravos da canalha,
O velho escravagismo estéril que sucumbe.

Surdinas

Ă€s raparigas tristes

Vais partir, vais partir que eu bem te vejo
Na branca face os gélidos suores,
Vais procurar as musicas melhores
Do sol, da glĂłria e do celeste beijo.

Dentro de ti harpas do desejo
NĂŁo vibram mais — embora que tu chores —
Nem pelas tuas aflições maiores
Se escuta um vago e enfraquecido arpejo…

Bem! vais partir, vais demandar esferas
Amplas de luz, feitas de primaveras,
Paisagens novas e amplidĂŁo florida…

Mas ao chegar-te a lágrima infinita,
Lembra-te ainda, ó pálida bonita
De que houve alguém que te adorou na vida.

Alma Que Chora

A JoĂŁo Saldanha

Em vão do Cristo aos olhos dulçurosos
Onde há o sol do bem e da verdade,
Cheios da luz eterna de saudade,
Como dois mansos corações piedosos,

Em vĂŁo do Cristo os olhos lacrimosos
E aquela doce e pura suavidade
Do seu semblante, casto, de bondade,
Cor do luar dos sonhos venturosos,

Servem de exemplo a dor escruciante
Que te apunhala e fere a cada instante,
A punhaladas rĂ­spidas, austeras!

Viste partir a tua irmĂŁ, se, viste,
Como num céu enévoado e triste
O bando azul das fĂşlgidas quimeras…

ApĂłs O Noivado

Em flácido divã ela resvala
Na alcova — bem feliz, alegremente,
E o fresco penteador alvinitente,
De nardo e benjoim o aroma exala.

E o noivo todo amor, assim lhe fala,
Por entre vibrações do olhar ardente:
Pertences-me afinal, pomba dormente
Parece que a razĂŁo de gozo, estala.

Mas eis — corre-se entĂŁo nĂ­vea cortina:
E a plácida, a ideal, a branca lua
Derrama nos vergĂ©is a luz divina…

Depois… Oh! Musa audaz, ousada, e nua,
Não rompas esse véu de gaze fina
Que encerra um madrigal — Vamos… recua!…

Divina

Eu não busco saber o inevitável
Das espirais da tua vi matéria.
Não quero cogitar da paz funérea
Que envolve todo o ser inconsolável.

Bem sei que no teu circulo maleável
De vida transitória e mágoa seria
Há manchas dessa orgânica miséria
Do mundo contingente , imponderável .

Mas o que eu amo no teu ser obscuro
E o evangélico mistério puro
Do sacrifĂ­cio que te torna heroĂ­na.

SĂŁo certos raios da tu’alma ansiosa
E certa luz misericordiosa,
E certa auréola que te fez divina!

Celeste

Vi-te crescer! tu eras a criança
Mais linda, mais gentil, mais delicada:
Tinhas no rosto as cores da alvorada
E o sol disperso pela loira trança.

Asas tinhas tambĂ©m, as da esperança…
E de tal sorte eras sutil e alada
Que parecias ave arrebatada
Na luz do Espaço onde a razão descansa!

Depois, entĂŁo, fizeste-te menina,
VisĂŁo de amor, purĂ­ssima, divina,
Perante a qual ainda hoje me ajoelho.

Cresceste mais! És bela e moça agora…
Mas eu, que acompanhei toda essa aurora,
Sinto bem quanto estou ficando velho.

Quando Será?!

Quando será que tantas almas duras
Em tudo, já libertas, já lavadas
nas águas imortais, iluminadas
Do sol do Amor, hĂŁo de ficar bem puras?

Quando será que as límpidas frescuras
Dos claros rios de ondas estreladas
Dos céus do Bem, hão de deixar clareadas
Almas vis, almas vĂŁs, almas escuras?

Quando será que toda a vasta Esfera,
Toda esta constelada e azul Quimera,
Todo este firmamento estranho e mudo,

Tudo que nos abraça e nos esmaga,
quando será que uma resposta vaga,
Mas tremenda, hĂŁo de dar de tudo, tudo?!

Eterno Sonho

Quelle est donc cette femme?
Je ne comprendrai pas.
FĂ©lix Arvers

Talvez alguém estes meus versos lendo
NĂŁo entenda que amor neles palpita,
Nem que saudade trágica, infinita
Por dentro dele sempre está vivendo.

Talvez que ela nĂŁo fique percebendo
A paixĂŁo que me enleva e que me agita,
Como de uma alma dolorosa, aflita
Que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,
Diga, a sorrir, num pouco de amizade,
Boa, gentil e carinhosa e franca:

— Ah! bem conheço o teu afeto triste…
E se em minha alma o mesmo nĂŁo existe,
É que tens essa cor e é que eu sou branca!

Domus Aurea

De bom amor e de bom fogo claro
Uma casa feliz se acaricia…
Basta-lhe luz e basta-lhe harmonia
Para ela nĂŁo ficar ao desamparo.

O Sentimento, quando Ă© nobre e raro,
Veste tudo de cândida poesia…
Um bem celestial dele irradia,
Um doce bem, que nĂŁo Ă© parco e avaro.

Um doce bem que se derrama em tudo,
Um segredo imortal, risonho e mudo,
Que nos leva debaixo da sua asa.

E os nossos olhos ficam rasos d’água
Quando, rebentos de uma oculta mágoa,
São nossos filhos todo o céu da casa.

Colar De PĂ©rolas

A F’licidade Ă© um colar de pĂ©rolas,
PĂ©rolas caras, de valor pujante,
Belas estrofes de Petrarca e Dante
Mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.

Para que enfim esse colar bendito,
Perdure sempre, inteiramente egrégio,
Como uma tela do pintor Correggio,
Sem resvalar no lodaçal maldito:

Faz-se preciso umas paixões bem retas,
Cheias de uns tons de muito sol — completas…
Faz-se preciso que do amor na febre,

Nos grandes lances de vigor preclaro,
Desse colar esplendoroso e raro,
Nem uma pĂ©rola, uma sĂł se quebre!…