Maria
Maria, há no seu gesto airoso o nobre,
Nos olhos meigos e no andar tĂŁo brando,
Um nĂŁo sei que suave que descobre,
Que lembra um grande pássaro marchando.Quero, às vezes, pedir-lhe que desdobre
As asas, mas não peço, reparando
Que, desdobradas, podem ir voando
Levá-la ao teto azul que a terra cobre.E penso então, e digo então comigo:
“Ao céu, que vê passar todas as gentes
Bastem outros primores de valia.Pássaro ou moça, fique o olhar amigo,
O nobre gesto e as graças excelentes
Da nossa cara e lépida Maria”.
Sonetos sobre Cara
17 resultadosNo Mundo Poucos Anos, E Cansados
No mundo poucos anos, e cansados,
vivi, cheios de vil miséria dura;
foi-me tĂŁo cedo a luz do dia escura,
que nĂŁo vi cinco lustros acabados.Corri terras e mares apartados
buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, nĂŁo quer ventura,
não o alcançam trabalhos arriscados.Criou-me Portugal na verde e cara
pátria minha Alenquer; mas ar corruto
que neste meu terreno vaso tinha,me fez manjar de peixes em ti, bruto
mar, que bates na Abássia fera e avara,
tão longe da ditosa pátria minha!
Soneto 568 Nazaretado
Uns dizem que de Ăndia tinha cara;
a outros parecia um rapazelho.
Famoso mesmo foi o seu joelho,
além da voz, que mais se aveludara.Veludo, mas cortante, coisa rara:
quer fosse a Lindonéia nosso espelho
ou fosse o Carcará bordão vermelho,
o fato Ă© que, no mapa, a nata Ă© Nara.Da Bossa Nova Ă© musa mais bem-quista.
Tropicalista diva, brilha quieta.
Rebelde mais serena nĂŁo se avista.Foi Ădolo, na luta, do poeta,
ao mesmo tempo olĂmpica e humanista,
pois Nara Ă© nata, Ă© nota, Ă© gata, Ă© neta.
O Meu Retrato
Sou magro, sou comprido, sou bizarro,
Tendo muito de orgulho e de altivez.
Trago a pender dos lábios um cigarro,
Misto de fumo turco e fumo inglĂŞs.Tenho a cara raspada e cor de barro.
Sou talvez meio excĂŞntrico, talvez.
De quando em quando da memĂłria varro
A saudade de alguém que assim me fez.Amo os cães, amo os pássaros e as flores.
Cultivo a tradição da minha raça
Golpeada de aventuras e de amores.E assim vivo, desatinado e a esmo.
As poucas sensações da vida escassa
São sensações que nascem de mim mesmo.
Cara Minha Inimiga, Em Cuja MĂŁo
Cara minha inimiga, em cuja mĂŁo
pĂ´s meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina fermosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh’alma te acharão.E se meus rudos versos podem tanto
que possam prometer te longa histĂłria
daquele amor tão puro e verdadeiro,celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memĂłria,
será minha escritura teu letreiro.
Em CustĂłdia
Quatro prisões, quatro interrogatórios…
Há três anos que as solas dos sapatos
Gasto, a correr de Herodes a Pilatos,
Como Cristo, por todos os pretórios!Pulgas, baratas, percevejos, ratos…
Caras sinistras de espiões notórios…
Fedor de escarradeiras e micróbios…
Catingas de secretas e mulatos…Para tantas prisões é curta a vida!
– Ó Dutra! Ó Melo! Ó Valadão! Ó diabo!
Vinde salvar-me! Vinde em meu socorro!Livrai-me desta fama imerecida,
Fama de Ravachol, que arrasto ao rabo,
Como uma lata ao rabo de um cachorro.
De TĂŁo Divino Acento E Voz Humana
De tĂŁo divino acento e voz humana,
de tĂŁo doces palavras peregrinas,
bem sei que minhas obras nĂŁo sĂŁo dinas,
que o rudo engenho meu me desengana.Mas de vossos escritos corre e mana
licor que vence as águas cabalinas;
e convosco do Tejo as flores finas
farĂŁo enveja Ă cĂłpia mantuana.E pois, a vĂłs de si nĂŁo sendo avaras,
as filhas de MnemĂłsine fermosa
partes dadas vos tem, ao mundo caras,a minha Musa e a vossa tĂŁo famosa,
ambas posso chamar ao mundo raras:
a vossa d’alta, a minha d’envejosa.
Adagas Cujas JĂłias Velhas Galas
Adagas cujas jóias velhas galas…
Opalesci amar-me entre mĂŁos raras,
E fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convĂ©s sem ninguĂ©m cheio de malas…O Ăntimo silĂŞncio das opalas
Conduz orientes até jóias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e salas…Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e estrugeSua ovação, e erguem as crianças
Mas o teclado as tuas mĂŁos pararam
E indefinidamente repousaram…
Anjo No Nome, Angélica Na Cara
Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso Ă© ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senĂŁo em vĂłs se uniformara?Quem veria uma flor, que nĂŁo a cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tĂŁo luzente,
Que por seu Deus, o nĂŁo idolatra?Se como Anjo sois dos meus altares,
FĂ´reis o meu custĂłdio, e minha guarda,
Livrara eu de diabĂłlicos azares.Mas vejo, que tĂŁo bela, e tĂŁo galharda,
Posto que os Anjos nunca dĂŁo pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e nĂŁo me guarda.
Cara Minha Inimiga
Cara minha inimiga, em cuja mĂŁo
PĂ´s meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Por que me falte a mim consolação.Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina formosura:
Mas enquanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharĂŁo.E, se meus rudos versos podem tanto,
Que possam prometer-te longa histĂłria
Daquele amor tão puro e verdadeiro,Celebrada serás sempre em meu canto:
Porque, enquanto no mundo houver memĂłria,
Será a minha escritura o teu letreiro.
Com Grandes Esperanças Já Cantei
Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
despois vim a chorar porque cantara
e agora choro já porque chorei.Se cuido nas passadas que já dei,
custa me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas que passara
tenho pola mor mágoa que passei.Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n’alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?
O Amor nĂŁo Tem Nenhuma Parte Terrena
Por ser maior o cerco de ouro ardente
do sol que o globo opaco que Ă© a terra,
e menor que este o que Ă lua encerra
as trĂŞs caras que mostra diferente,ora a vemos minguante, ora crescente,
ora na sombra o eclipse a enterra;
porém aos seis planetas não faz guerra,
nem uma estrela sua injĂşria sente.A fogueira do meu amor, cravada
no zénite do vasto firmamento,
não baixa em sombras ou está eclipsada.Manchas da terra não as experimento:
que sua noite dista da sagrada
região onde minha fé tem seu assento.Tradução de José Bento
Cegos como as Peças de Ouro Reluzentes
A Fama, a GlĂłria, as Armas, a Nobreza,
A CiĂŞncia, o Poder e tudo quanto
Em honra e distinção, de canto a canto,
Encerra deste mundo a vĂŁ Grandeza,A Pluto, cego deus, com vil baixeza
Adoram de joelhos, como a santo:
Pois sĂł o deus do reino atroz do espanto
Pode ser rei e Numen da riqueza.Do dossel do seu trono estĂŁo pendentes
C’roas, mitras, lauréis, brazões, tiaras,
Que o cego deus reparte às cegas gentes.Tudo of’rendar-lhe vai nas torpes aras,
Cegos co’as peças de ouro reluzentes,
A Honra, a Liberdade, as vidas caras.
Sátira aos Penteados Altos
Chaves na mĂŁo, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a mãe ordena
Que o furtado colchĂŁo, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.A filha, moça esbelta e aperaltada,
Lhe diz coa doce voz que o ar serena:
– «Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena;
Olhe não fique a casa arruinada…»– «Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?» E, dizendo isto,Arremete-lhe à cara e ao penteado.
Eis senĂŁo quando (caso nunca visto!)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!…
Luar
Ao longo das lourĂssimas searas
Caiu a noite taciturna e fria…
Cessou no espaço a lĂmpida harmonia
Das infinitas perspectivas claras.As estrelas no céu, puras e raras,
Como um cristal que nĂtido radia,
Abrem da noite na mudez sombria
O cofre ideal de pedrarias caras.Mas uma luz aos poucos vai subindo
Como do largo mar ao firmamento — abrindo
Largo clarão em flocos d’escomilha.Vai subindo, subindo o firmamento!
E branca e doce e nĂvea, lento e lento,
A lua cheia pelos campos brilha…
Auto-Retrato
O’Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angĂşstia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e nĂŁo cicatrizada.Se a visagem de tal sujeito Ă© o que vĂŞs
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada…)No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras milque são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…
Colar De PĂ©rolas
A F’licidade é um colar de pérolas,
PĂ©rolas caras, de valor pujante,
Belas estrofes de Petrarca e Dante
Mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.Para que enfim esse colar bendito,
Perdure sempre, inteiramente egrégio,
Como uma tela do pintor Correggio,
Sem resvalar no lodaçal maldito:Faz-se preciso umas paixões bem retas,
Cheias de uns tons de muito sol — completas…
Faz-se preciso que do amor na febre,Nos grandes lances de vigor preclaro,
Desse colar esplendoroso e raro,
Nem uma pérola, uma só se quebre!…