XIX
Corino, vai buscar aquela ovelha,
Que grita lá no campo, e dormiu fora;
Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:
Como vem tão risonha, e tão vermelha!Já perdi noutro tempo uma parelha
Por teu respeito; queira Deus, que agora
Não se me vá também estoutra embora;
Pois não queres ouvir, quem te aconselha.Que sono será este tão pesado!
Nada responde, nada diz Corino:
Ora em que mãos está meu pobre gado!Mas ai de mim! que cego desatino.
Como te hei de acusar de descuidado,
Se toda a culpa tua Ă© meu destino!
Sonetos sobre Culpa
29 resultadosXXVII
Ontem – nĂ©scio que fui! – maliciosa
Disse uma estrela, a rir, na imensa altura:
“Amigo! uma de nĂłs, a mais formosa
“De todas nĂłs, a mais formosa e pura,“Faz anos amanhĂŁ… Vamos! procura
“A rima de ouro mais brilhante, a rosa
“De cor mais viva e de maior frescura!”
E eu murmurei comigo: “Mentirosa!”E segui. Pois tĂŁo cego fui por elas,
Que, enfim, curado pelos seus enganos,
já nĂŁo creio em nenhuma das estrelas…E – mal de mim! – eis-me, a teus pĂ©s, em pranto…
Olha: se nada fiz para os teus anos,
Culpa as tuas irmĂŁs que enganam tanto!
Pecado Original
Sim, MĂŁe! sim, quanta vez te vi chorar…,
Sem desistir de te fazer sofrer!
Gozava entĂŁo nem sei que atroz prazer
De te arranhar no peito… e me arranhar.Mas quis lutar comigo, MĂŁe! lutar
Contra esse monstro obscuro do meu ser.
Que sonho, MĂŁe!: ter-me eu em meu poder,
Talhar-me bom, feliz, simples, vulgar…MĂŁe! com que força eu vi que era impotente!
… Porque de bem mais longe e bem mais fundo
A culpa do meu ser a nĂłs dois veio.Perdoemos um ao outro, humildemente:
Eu, Mãe! — ter-me o teu seio dado ao mundo;
Tu, — ter-me eu feito vida no teu seio.
VĂłs Outros, Que Buscais Repouso Certo
VĂłs outros, que buscais repouso certo
na vida, com diversos exercĂcios;
a quem, vendo do mundo os benefĂcios,
o regimento seu está encoberto;dedicai, se quereis, ao desconcerto
novas hontas e cegos sacrifĂcios;
que, por castigo igual de antigos vĂcios,
quer Deus que andem as cousas por acerto.NĂŁo caiu neste modo de castigo
quem pôs culpa à Fortuna, quem sòmente
crê que acontecimentos há no mundo.A grande experiência é grão perigo;
mas o que a Deus Ă© justo e evidente
parece injusto aos homens e profundo.
O Mágico Veneno
Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quĂŞ; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravĂssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
IndĂcio da alma, limpo e gracioso;Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pĂ´de transformar meu pensamento.
Pequei, Senhor; Mas NĂŁo Porque Hei Pecado
Pequei, Senhor; mas nĂŁo porque hei pecado,
Da vossa alta clemĂŞncia me despido,
Porque quanto mais tenho delinqĂĽido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um sĂł gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.Se uma ovelha perdida e já cobrada
GlĂłria tal e prazer tĂŁo repentino
Vos deu, como afirmais na sacra histĂłria:Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e nĂŁo queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glĂłria.
Desobriga
Os meus peccados, Anjo! os meus peccados!
Contar-t’os? Para que, se nĂŁo tĂŞm fim…
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és mais que santa ao pé de mim!A ti accendo cyrios perfumados,
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando soffro, me vejo com cuidados…
Nas tuas rezas, lembra-te de mim!Que eu seja puro d’alma e pensamento!
E que, em dia do grande julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:Pois tenho, que o céu tudo aponta e marca,
Um processo a correr n’essa comarca,
Cujo delegado Ă© Nosso Senhor…
Em Tormentos Cruéis
Em tormentos cruéis, tal sofrimento,
em tĂŁo contĂnua dor, que nunca aliva,
chamar a morte sempre, e que ela, altiva,
se ria dos meus rogos, no tormento!E ver no mal que todo entendimento
naturalmente foge, e quanto aviva
a dor mais o vagar da alma cativa,
a quem não fará crer que é tudo um vento?Bem sei uns olhos, que têm toda a culpa,
e sĂŁo os meus, que a toda parte vĂŞm
após o que vêem sempre e os desculpa.Ó minhas visões altas, meu só bem,
quem vos a vĂłs nĂŁo vĂŞ, esse me culpa,
e eu sou o só que as vejo, outrem ninguém!
Simples Soneto
Desejado soneto este que Ă© escrito
sem as firulas graves do solene,
que leva na palavra o simples rito
da fala cotidiana. NĂŁo condeneno entanto, a falta de um estro especioso,
nem de brega rotule esse meu vezo.
Apenas sinta o som oco e poroso
do fundo mar de anĂŞmonas, o pesorarefeito das algas nos peraus.
Essa cantiga filtra nossos medos,
as culpas e os tabus, e dá-me o aval
para buscar o simples e em querê-loornamento de estética espartana
na faxina ao supérfluo que se espana.