Sonetos sobre Dor de Anibal Beça

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Sonetos de dor de Anibal Beça. Leia este e outros sonetos de Anibal Beça em Poetris.

Picadeiro

Estava sossegado lá no fundo
Do meu eu e de mim sem muita pressa
Nesses momentos calmos que circundo
Roteiro e enredo em ato que começa

Minha descida ao palco do meu mundo
Que venho e represento a farsa dessa
Comédia que é de arte em que aprofundo
A pena desgarrada em vã promessa

De bem cantar somente o mais fecundo
Sonho sonhado sem a dor expressa
Que a vida vai me dando num segundo

O desempenho em títere da peça
Neste papel de doce vagabundo
Que me faz rir da dor doída à beça.

O Cão

O cão da caravana acoita sarnas
pelos pêlos tragados de suor
que encarnam carnaduras já de cor
na salteada costa descarnada

O cão da caravana esconde as armas
o fogo e a cinza dessa cauda cor-
rente ao dorso de estrelas apagadas
se acendem cimitarras para a dor

Ao relho e aos ossos pó entre mil noites
dita a desdita escrita: Maktub!
E o cão se assenta dócil para o açoite

Mas lhe aguarda a tarefa de quem ladra
e exorcisa a baraka dos impuros
enquanto a vida caravana passa

Aboio De Ternura Para Uma Rês Desgarrada Para Astrid Cabral

Fora de tua tribo peixe fora d’água,
bordando as muitas dores no ponto de cruz,
alinhavas rebanhos reunidos na frágua
dos rios da tua infância com escamas de luz.

Versos tecidos na cambraia das anáguas
de alices caboclas, yaras-cunhãs do fundo,
encantadas dos peraus, afogando mágoas,
mas que sabem, sestrosas, dos botos do mundo.

E os teus pés desgarrados pisaram em nuvens
de ventos sem mormaços, no azul de outras línguas:
águas despidas do alfenim de nossas chuvas.

Te sabias folha de relva da ravina
irmã de Whitman e do Khayam simum
próxima do teu gado e rês da própria sina.

A Morte Sendo Amor

Quantas vezes subi com a pedra às costas
para depois descer com o mesmo fardo
torneio em que sou alvo do meu dardo
próprio, a sangrar nas távolas de apostas.

Não me sei vencedor. Tampouco guardo
as dores, ou fraturas mais expostas.
Sei que vou quando chego e não me tardo.
Lição que é nascitura e de ocasos

na transversal em curva me celebro
o vencedor, o torto sem atrasos.
Eis aí a certeza derradeira

que chega invitável sem ter prazos:
vivi todas subidas e descidas
amortecendo o amor sem as feridas

Joropo Para Timples E Harpa

Em duas asas prontas para o vôo
assim se foi em par a minha vida
e com rilhar de dentes me perdôo
trilhando as horas nuas na medida

Bilros tecendo rendas amarelas
bordando em vão um tempo já remoto
no sol dos girassóis da cidadela
canto um recanto que me faz devoto

A dor que existe em mim raiz que medra
no rastro mais sombrio as minhas luas
talvez não fora Sísifo ou a pedra

que encontro todo dia pelas ruas
ao revirar as heras nessa redra
trilhando na medida as horas nuas

Prólogo

Cavo a cova como um cavalo os cascos cava
se no cavá-lo invoca a fúria de ferir
E tanto mais se cava que a alma não se lava
e as águas já me levam léguas a fingir

Cava costura cavo à cava enviesada
e o talhe tinge a sombra em descaída pena
Nessa escritura a sina foge desgarrada
e o corte torce a mão e a garra do poema

E dono não sou mais senão o torto artífice
dessas linhas traçadas a dois e por um
E assim me assino esse uno e esse outro Majnun
que por louca paixão da noite é seu partícipe

mesmo sem Laila veste a dor e se vislumbra
nos lobos do deserto donos da penumbra

Os Castrados

Há muitos tipos de castrados.
Há os da casta de cantores
que se afinam na voz mais fina
aleijões de seus dissabores.

Há os de vida feminina
de tarefas vis sem pudores
aios de haréns de concubinas
os assexuados sem rumores.

São todos eunucos forçados
vítimas do mando de autores:
os sultões de sanha assassina
que gozam no estertor das dores.

Castrados morais têm escrotos,
mas gozam com sexo dos outros.