Ăngelus
Desmaia a tarde. Além, pouco e pouco, no poente,
O sol, rei fatigado, em seu leito adormece:
Uma ave canta, ao longe; o ar pesado estremece
Do Ăngelus ao soluço agoniado e plangente.Salmos cheios de dor, impregnados de prece,
Sobem da terra ao céu numa ascensão ardente.
E enquanto o vento chora e o crepĂșsculo desce,
A ave-maria vai cantando, tristemente.Nest’hora, muita vez, em que fala a saudade
Pela boca da noite e pelo som que passa,
Lausperene de amor cuja mĂĄgoa me invade,Quisera ser o som, ser a noite, Ă©bria e douda
De trevas, o silĂȘncio, esta nuvem que esvoaça,
Ou fundir-me na luz e desfazer-me toda.
Sonetos de Francisca JĂșlia da Silva
9 resultadosMusa ImpassĂvel II
Ă Musa, cujo olhar de pedra, que nĂŁo chora,
Gela o sorriso ao lĂĄbio e as lĂĄgrimas estanca!
DĂĄ-me que eu vĂĄ contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassĂvel mora.Leva-me longe, Ăł Musa impassĂvel e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O ĂĄureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.Transporta-me de vez, numa ascensĂŁo ardente,
Ă deliciosa paz dos OlĂmpicos-Lares
Onde os deuses pagĂŁos vivem eternamente,E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os HerĂłis do grande mundo antigo.
Musa ImpassĂvel I
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cĂąndido semblante!
Diante de um JĂł, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.Em teus olhos nĂŁo quero a lĂĄgrima; nĂŁo quero
Em tua boca o suave e idĂlico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.DĂĄ-me o hemistĂquio d’ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d’alma; a estrofe limpa e viva;Versos que lembrem, com seus bĂĄrbaros ruĂdos,
Ora o ĂĄspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mĂĄrmores partidos.
Noturno
Pesa o silĂȘncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitĂ©rio…
à frente, um vulto agita a caçoula do incenso.E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lågrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua…
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele em silĂȘncio, flutua
O lausperene mudo e sĂșplice das almas.
Anfitrite
Louco, Ă s doudas, roncando, em lĂĄtegos, ufano,
O vento o seu furor colĂ©rico passeia…
Enruga e torce o manto Ă prateada areia
Da praia, zune no ar, encarapela o oceano.A seus uivos, o mar chora o seu pranto insano,
Grita, ulula, revolto, e o largo dorso arqueia;
Perdida ao longe, como um pĂĄssaro que anseia,
Alva e esguia, uma nau avança a todo o pano.Sossega o vento; cala o oceano a sua mågoa;
Surge, esplĂȘndida, e vem, envolta em ĂĄurea bruma,
Anfitrite, e, a sorrir, nadando Ă tona d’ĂĄgua,LĂĄ vai… mostrando Ă luz suas formas redondas,
Sua clara nudez salpicada de espuma,
Deslizando no glauco amĂculo das ondas.
Sonho Africano
Ei-lo em sua choupana. A lĂąmpada, suspensa
Ao teto, oscila; a um canto, um velho e ervado fimbo;
Entrando, porta dentro, o sol forma-lhe um nimbo
Cor de cinĂĄbrio em torno Ă carapinha densa.Estira-se no chĂŁo… Tanta fadiga e doença!
Espreguiça, boceja… O apagado cachimbo
Na boca, nessa meia escuridĂŁo de limbo,
Mole, semicerrando os dĂșbios olhos, pensa…Pensa na pĂĄtria, alĂ©m… As florestas gigantes
Se estendem sob o azul, onde, cheios de mĂĄgoa,
Vivem negros reptis e enormes elefantes…Calma em tudo. Dardeja o sol raios tranquilos…
Desce um rio, a cantar… Coalham-se Ă tona d’ĂĄgua
Em compacto apertĂŁo, os velhos crocodilos…
RĂșstica
Da casinha, em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirĂŁo na ĂĄgua clara e sonora.
Este Ă© o ninho feliz e obscuro em que ela mora;
AlĂ©m, o seu quintal, este, o seu aposento.Vem do campo, a correr; e Ășmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora
Que parece trazer consigo, lĂĄ de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento…E senta-se. CompĂ”e as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocĂȘncia bĂłia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno,Pegando da costura Ă luz da clarabĂłia,
PÔe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensĂŁo de jĂłia.
Paisagem
Dorme sob o silĂȘncio o parque. Com descanso,
Aos haustos, aspirando o finĂssimo extrato
Que evapora a verdura e que deleita o olfato,
Pelas alas sem fim da årvores avanço.Ao fundo do pomar, entre folhas, abstrato
Em cismas, tristemente, um alvĂssimo ganso
Escorrega de manso, escorrega de manso
Pelo claro cristal do lĂmpido regato.Nenhuma ave sequer, sobre a macia alfombra,
Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece
A campina, a rechĂŁ sob a noturna sombra.E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas
Selvas a dentro entrando, a noite desce, desce…
E espalham-se no cĂ©u camandulas de estrelas…
Carlos Gomes
Essa que plange, que soluça e pensa,
Amorosa e febril, tĂmida e casta,
Lira que raiva, lira que devasta,
E que dos prĂłprios sons vive suspensa.Guarda nas costas uma escala imensa,
Que, quando rompe, espaço fora, arrasta
Ora do mar as queixas ora a vasta
Sussurração de uma floresta densa.Ei-la muda, mas tal intensidade
Teve a mĂșsica enorme do seu choro
O dilĂșvio orquestral dos seus lamentos.Que muda assim, rotas as cordas hĂĄ de
Para sempre vibrar o eco sonoro
Que sua alma lançou aos quatro ventos.