XIV
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondĂȘncia,
Ou desconhece o rosto da violĂȘncia,
Ou do retiro a paz nĂŁo tem provado.Que bem Ă© ver nos campos transladado
No gĂȘnio do pastor, o da inocĂȘncia!
E que mal Ă© no trato, e na aparĂȘncia
Ver sempre o cortesĂŁo dissimulado!Ali respira amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.Ali não hå fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, Ă© variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
Sonetos sobre GĂ©nios
29 resultadosSentimento Esquisito
à céu estéril dos desesperados,
Forma impassĂvel de cristas sidĂ©reo,
Dos cemitérios velho cemitério
Onde dormem os astros delicados.PĂĄtria d’estrelas dos abandonados,
Casulo azul do anseio vago, aéreo,
Formidåvel muralha de mistério
Que deixa os coraçÔes desconsolados.CĂ©u imĂłvel milĂȘnios e milĂȘnios,
Tu que iluminas a visĂŁo dos GĂȘnios
E ergues das almas o sagrado acorde.Céu estéril, absurdo, céu imoto,
Faz dormir no teu seio o Sonho ignoto,
Esta serpente que alucina e morde…
New York
Resplandeces e ris, ardes e tumultuas;
Na escalada do cĂ©u, galgando em fĂșria o espaço,
Sobem do teu tear de praças e de ruas
Atlas de ferro, Anteus de pedra e Brontes de aço.Gloriosa! Prometeu revive em teu regaço,
Delira no teu gĂȘnio, enche as artĂ©rias tuas,
E combure-te a entranha arfante de cansaço,
Na incessante criação de assombros em que estuas.Mas, como as tuas Babéis, debalde o céu recortas,
E pesas sobre o mar, quando o teu vulto assoma,
Como a recordação da Tebas de cem portas:Falta-te o Tempo, – o vago, o religioso aroma
Que se respira no ar de Lutécia e de Roma,
Sempre moço perfume anciĂŁo de idades mortas…
LĂĄgrimas Da Aurora, Poemas Cristalinos
LĂĄgrimas da aurora, poemas cristalinos
Que rebentais das cobras do mistério!
Aves azuis do manto auri-sidĂ©rio…
Raios de luz, fantĂĄsticos, divinos!…Astros diĂĄfanos, brandos, opalmos,
Brancas cecens do ParaĂso etĂ©reo,
Canto da tarde, lĂmpido, aĂ©reo,
Harpa ideal, dos encantados hinos!…Brisas suaves, viraçÔes amenas,
LĂrios do vale, roseirais do lago,
Bandos errantes de sutis falenas!…Vinde do arcano n’um potente afago
Louvar o GĂȘnio das mansĂ”es serenas,
Esse ProdĂgio singular e mago!!…
Dizem Que A Arte à A Clùmide De Idéia
Dizem que a arte é a clùmide de idéia
A peregrina irradiação celeste,
E d’isso a prova singular jĂĄ deste
Sorvendo d’ela a divinal sabĂ©ia!.Da “Georgeta” na feliz estrĂ©ia,
Asseverar-nos ainda mais vieste
Que Ă©s um gĂȘnio, que te vĂĄs de preste
Tornando o assombro de qualquer platĂ©ia!…Sinto uns transportes fervorosos, ledos
Quando nas cenas de sutis enredos
Fulgem-te os olhos co’a expressĂŁo dos astros!…E as turbas mudas, impassĂveis, calmas
Sentem mil mundos lhes crescer nas almas…
VĂŁo-te seguindo os luminosos rastros!…
Grandeza Oculta
Estes vĂŁo para as guerras inclementes,
Os absurdos herĂłiis sanguinolentos,
Alvoroçados, tontos e sedentos
Do clamor e dos ecos estridentes.Aqueles para os frĂvolos e ardentes
Prazeres de acres inebriamentos:
Vinhos, mulheres, arrebatamentos
De luxĂșrias carnais, impenitentes.Mas Tu, que na alma a imensidade fechas,
Que abriste com teu GĂȘnio fundas brechas
no mundo vil onde a maldade exulta,Ă delicado espĂrito de Lendas!
Fica nas tuas Graças estupendas,
No sentimento da grandeza oculta!
Saint-Just
Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo,
– Ao forte impulso das paixĂ”es audazes
Ardente o lĂĄbio de terrĂveis frases
E a luz do gĂȘnio em seu olhar fulgindo,A tirania estremeceu nas bases,
De um rei na fronte ressumou, pungindo,
Um suor de morte e um terror infindo
Gelou o seio aos cortesĂŁos sequazes –Uma alma nova ergueu-se em cada peito,
Brotou em cada peito uma esperança,
De um sono acordou, firme, o Direito –E a Europa – o mundo – mais que o mundo, a França –
Sentiu numa hora sob o verbo seu
As comoçÔes que em séculos não sofreu!
Eu Como, Eu Bebo, Eu Durmo
Eu como, eu bebo, eu durmo e a vida passo
Ora bem, ora mal, como sucede:
Tomo tabaco, e chĂĄ; e se mo pede
O génio alguma vez, eu Nize abraço:As vezes jogo, as vezes versos faço,
Que mais que a arte a natureza mede:
E talvez por saber como procede
Em se mover o Sol cĂrculos traço.Alguma vez me agrada a soledade,
Outras vezes a nobre companhia;
E desta sorte vou passando a idade:E espero assim que venha a morte fria
Com o manto da eterna escuridade
Encobrir-me de todo a luz do dia.
Liberdade, Onde estĂĄs? Quem Te Demora?
Liberdade, onde estĂĄs? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nĂłs nĂŁo caia?
Porque (triste de mim!) porque nĂŁo raia
JĂĄ na esfera de LĂsia a tua aurora?Da santa redenção Ă© vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia.
Oh!, venha . . . Oh!, venha, e trĂȘmulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!Eia! Acode ao mortal que, frio e mudo,
Oculta o pĂĄtrio amor, torce a vontade
E em fingir, por temor, empenha estudo.Movam nossos grilhÔes tua piedade;
Nosso nĂșmen tu Ă©s, e glĂłria, e tudo,
MĂŁe do gĂȘnio e prazer, Ăł Liberdade!
Soneto 278 A Salvador Dali
Pra mim, Picasso perto dele Ă© pinto.
Qual cubo nem Guernica! O catalĂŁo
pÎs fogo na girafa, e då lição
de como vocĂȘ pinta como eu pinto.RelĂłgios derreteu, deu ao recinto
bagunça formidåvel de ilusão.
Bigodes retorceu, e a posição
do Cristo subverteu: estilo extinto.Talvez fez na pintura o que GaudĂ
ergueu, fenomenal, na arquitetura:
delĂrio, porĂ©m nĂtido. NĂŁo vino sĂ©culo atual maior textura
que o fruto da estranheza de Dali,
o gĂȘnio do ocular na cor. Loucura!
Quatro Sonetos De Meditação – II
Uma mulher me ama. Se eu me fosse
Talvez ela sentisse o desalento
Da ĂĄrvore jovem que nĂŁo ouve o vento
Inconstante e fiel, tardio e doceNa sua tarde em flor. Uma mulher
Me ama como a chama ama o silĂȘncio
E o seu amor vitorioso vence
O desejo da morte que me quer.Uma mulher me ama. Quando o escuro
Do crepĂșsculo mĂłrbido e maduro
Me leva a face ao gĂȘnio dos espelhosE eu, moço, busco em vĂŁo meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina:
Uma mulher me ama e me ilumina.
Soneto 253 A Renato Russo
Embora original, gĂȘnio, perito,
do nosso rock um raro uirapuru,
vivia ensimesmado e jururu,
talvez por nĂŁo ser grego nem bonito.Entendo a sua angĂșstia e o seu conflito,
meu Ădolo, meu mĂĄrtir, meu guru!
Causou vocĂȘ, primeiro, um sururu;
depois, tristeza, e entĂŁo calou seu grito.Respeito quem Ă© triste, ou aparenta.
Os outros grandes brincam: Raul, Rita,
ou cospem mera raiva barulhenta.Cazuza também brinca, mas medita.
Arnaldo Antunes testa, experimenta.
Renato faz da dor a dor: maldita!
Louvor A Unidade
“Escafandros, arpĂ”es, sondas e agulhas
“Debalde aplicas aos heterogĂȘneos
“FenĂŽmenos, e, hĂĄ inĂșmeros milĂȘnios,
“Num pluralismo hediondo o olhar mergulhas!“Une, pois, a irmanar diamantes e hulhas,
“Com essa intuição monĂstica dos gĂȘnios,
“Ă hirta forma falaz do are perennius
“A transitoriedade das fagulhas!”– Era a estrangulação, sem retumbĂąncia,
Da multimilenĂĄria dissonĂąncia
Que as harmonias siderais invade…Era, numa alta aclamação, sem gritos,
O regresso dos ĂĄtomos aflitos
Ao descanso perpétuo da Unidade!
MarĂlia De Dirceu
Soneto 7
O nume tutelar da Monarquia,
Que fez do grande Henrique a invicta espada,
Procurou dos Destinos a morada,
Por consultar a idade que viria.A mil e mil herĂłis descrito via,
Que exaltam de furtado a estirpe honrada,
E na série, que adora, dilatada,
O nome de Francisco descobria.Contempla uma por uma as letras d’ouro;
Este penhor, que o tempo nĂŁo consome,
Promete ao reino seu maior tesouro.Prostra-se o gĂȘnio; e sem que a empresa tome
De lhe buscar sequer mais outro agouro,
O sĂtio beija, e lhe mostra o nome.
XXVIII
Faz a imaginação de um bem amado,
Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se nĂŁo distingue jĂĄ do meu cuidado.Nesta doce loucura arrebatado
Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,
E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;Como nas tristes lĂĄgrimas, que verto,
Ao querer contrastar seu gĂȘnio esquivo,
TĂŁo longe dela estou, e estou tĂŁo perto.
Ă Delicada, Suave, Vaporosa
Ă delicada, suave, vaporosa,
A grande atriz, a singular feitura…
Ă linda e alva como a neve pura,
DĂ©bil, franzina, divinal, nervosa!…E d’entre os lĂĄbios setinais, de rosa
Libram-se pĂ©rolas de nitente alvura…
E doce aroma de sutil frescura
Sai-lhe da leve compleição mimosa!…Quando aparece no febril proscĂȘnio
Bem como os mitos do passado, ingentes,
Bem como um astro majestoso, helĂȘnio…Sente-se n’alma as atraçÔes potentes
Que sĂł se operam ao fulgor do gĂȘnio,
As rubras chispas ideais, ferventes!…
Ergue, Criança, A Fronte Condorina
Ergue, criança, a fronte condorina
Que é tua fronte, oh!, genial criança,
Ă como a estrela-d’alva da esperança,
Do talento sagrado que a ilumina!Ergue-a, pois, e que, à auréola purpurina
Do Sol da CiĂȘncia, o rĂștilo tesouro
Do Estudo – o Grande Mestre – que te ensina,
Chova sobre ela suas gemas d’ouro!E hoje que colhes um laurel bendito,
Aceita a saudação que num contrito
Fervor, eleva, qual penhor sinceroUm peito amigo a outro peito amigo,
A um gĂȘnio que desponta e que eu bendigo,
A um coração de irmão que tanto quero!
XXII
A Goethe.
Quando te leio, as cenas animadas
Por teu gĂȘnio, as paisagens que imaginas,
Cheias de vida, avultam repentinas,
Claramente aos meus olhos desdobradas.Vejo o céu, vejo as serras coroadas
De gelo, e o sol que o manto das neblinas
Rompe, aquecendo as frĂgidas campinas
E iluminando os vales e as estradas.Ouço o rumor soturno da charrĂșa,
E os rouxinĂłis que, no carvalho erguido,
A voz modulam de ternuras cheia.E vejo, Ă luz tristĂssima da lua,
Hermann que cisma, pĂĄlido, embebido
No meigo olhar da loura DorothĂ©a…
Chegou Enfim, E O Desembarque Dela
Chegou enfim, e o desembarque dela
Causou-me logo uma impressĂŁo divina!
Ă meiga, pura como sĂŁ bonina,
Nos olhos vivos doce luz revela!Ă graciosa, sacudida e bela,
NĂŁo tem os gestos de qualquer menina:
Parece um gĂȘnio que seduz, fascina,
TĂŁo atraente, singular Ă© ela!Chegou, enfim! eu murmurei contente!
Fez-se em minh’alma purpurina aurora,
O entusiasmo me brotou fervente!Vimos-lhe apenas a construção sonora,
Vimos a larva, nada mais, somente
Falta-nos ver a borboleta agora!
A CamÔes
Quando n’alma pesar de tua raça
A névoa da apagada e vil tristeza,
Busque ela sempre a glĂłria que nĂŁo passa,
Em teu poema de heroĂsmo e de beleza.GĂȘnio purificado na desgraça,
Tu resumiste em ti toda a grandeza:
Poeta e soldado… Em ti brilhou sem jaça
O amor da grande pĂĄtria portuguesa.E enquanto o fero canto ecoar na mente
Da estirpe que em perigos sublimados
Plantou a cruz em cada continente,NĂŁo morrerĂĄ, sem poetas nem soldados,
A lĂngua em que cantaste rudemente
As armas e os barÔes assinalados.