Vinho Negro
O vinho negro do imortal pecado
Envenenou nossas humanas veias
Como fascinações de atras sereias
E um inferno sinistro e perfumado.O sangue canta, o sol maravilhado
Do nosso corpo, em ondas fartas, cheias.
como que quer rasgar essas cadeias
Em que a carne o retém acorrentado.E o sangue chama o vinho negro e quente
Do pecado letal, impenitente,
O vinho negro do pecado inquieto.E tudo nesse vinho mais se apura,
Ganha outra graça, forma e formosura,
Grave beleza d’esplendor secreto.
Sonetos sobre Graça
111 resultadosMãos
V
Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.
Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!
Floripes
Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono…Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.
Alma Fatigada
Nem dormir nem morrer na fria Eternidade!
Mas repousar um pouco e repousar um tanto,
Os olhos enxugar das convulsões do pranto,
Enxugar e sentir a ideal serenidade.A graça do consolo e da tranqüilidade
De um céu de carinhoso e perfumado encanto,
Mas sem nenhum carnal e mórbido quebranto,
Sem o tédio senil da vã perpetuidade.Um sonho lirial d’estrelas desoladas
Onde as almas febris, exaustas, fatigadas
Possam se recordar e repousar tranqüilas!Um descanso de Amor, de celestes miragens,
Onde eu goze outra luz de místicas paisagens
E nunca mais pressinta o remexer de argilas!
Sol E Anarda
O sol ostenta a graça luminosa,
Anarda por luzida se pondera;
o sol é brilhador na quarta esfera,
brilha Anarda na esfera de formosa.Fomenta o sol a chama calorosa,
Artarda ao peito viva chama altera,
o jasmim, cravo e rosa ao sol se esmera,
cria Anarda o jasmim, o cravo e a rosa.O sol à sombra dá belos desmaios,
com os olhos de Anarda a sombra é clara,
pinta maios o sol, Anarda maios.Mas (desiguais só nisto) se repara
o sol liberal sempre de seus raios,
Anarda de seus raios sempre avara.
Conchita
Adeus aos filtros da mulher bonita;
A esse rosto espanhol, pulcro e moreno;
Ao pé que no bolero… ao pé pequeno;
Pé que, alígero e célere, saltita…Lira do amor, que o amor não mais excita,
A um silêncio de morte eu te condeno;
Despede-te; e um adeus, no último treno,
Soluça às graças da gentil Conchita:A esses, que em ondas se levantam, seios
Do mais cheiroso jambo; a esses quebrados
Olhos meridionais de ardência cheios;A esses lábios, enfim, de nácar vivo,
Virgens dos lábios de outrem, mas corados
Pelos beijos de um sol quente e lascivo.
Feliz!
Ser de beleza, de melamcolia,
Espírito de graça e de quebranto,
Deus te bendiga o doloroso pranto,
Enxugue as tuas lágrimas um dia.Se a tu’alma é d’estrela e d’harmonia,
Se o que vem dela tem divino encanto,
Deus a proteja no sagrado manto,
No céu, que é o vale azul da Nostalgia.Deus a proteja na felicidade
Do sonho, do mistério, da saudade,
De cânticos, de aroma e luz ardente.E sê feliz e sê feliz subindo,
Subindo, a Perfeição na alma sentindo
Florir e alvorecer libertamente!
Camões I
Tu quem és? Sou O século que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A glória resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.Que cantou ele? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lira alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.Nobremente sofreu? Como homem forte.
Esta imensa oblação?… É-lhe devida.
Paga?… Paga-lhe toda a adversa sorte.Chama-se a isto? A glória apetecida.
Nós, que o cantamos?… Volvereis à morte.
Ele, que é morto?… Vive a eterna vida.
Vê Minha Vida à Luz da Protecção
Vê minha vida à luz da protecção
que dás disposta a dar-se por amor
e quando a mãe te deu à luz com dor
o espírito adensou-se nela entãoo mesmo que em espigas pelo verão
a negra fronte bela foi compor
de inverno em voz amarga acusador
a cuja vista as lágrimas virãoMeu amor em teu corpo se cinzela
e dele os outros seres recebem vida
perante ti criança os que da feridasangram exposta ao mundo que flagela
A mim foste mais bálsamo porém
do que as curas balsâmicas que tem.Tradução de Vasco Graça Moura
Retrato das Mulheres em Todas as Idades
Mulher, de quinze a vinte é fresca rosa;
De vinte, a vinte e cinco é de exp’rimenta.
De vinte cinco a trinta, a graça aumenta:
Ditoso nesta idade quem a goza!De trinta a trinta e cinco é mal gostosa
Porém, pode passar, com sal, pimenta,
Mas já dos trinta e cinco aos quarenta
Vai-se tornando assaz fastidiosa.De quarenta e cinco ela é bachareleira,
Fala fanhoso e é já de pouco gabo.
De cinquenta cerrados é santeira!Aos sessenta este seu retrato acabo:
Menina, moça, velha benzedeira,
Bruxa gogosa, então, leve-a o diabo!
Como é que a Solidão Hei-de Ir Medindo?
Como é que a solidão hei-de ir medindo?
desse-me os golpes de uso inda esta dor
um a um sua nudez a sobrepor
que o ritmo sem nome a foi vestindomas sofro agora o tempo nu saindo
numa levada sem nenhum teor
gasto caudal do meu rio interior
nem chora o peito por mais gritos vindoQuando é que é novo ano na amargura
quando volto a chegar-me à desventura
que me faz falta em ocos dias vis.ah quando é que arde escura em cores febris
à testa do ano como a vi na altura
do agosto em chamas funda cicatriz?Tradução de Vasco Graça Moura
Se Agora não Quereis quem vos Ama
Está-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta;
Nas belas faces, e na boca e testa,
Cecéns, rosas, e cravos debuxando.De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta,
Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,
Se estão de vós, Senhora, namorando.Se agora não quereis que quem vos ama
Possa colher o fruto destas flores,
Perderão toda a graça os vossos olhos.Porque pouco aproveita, linda Dama,
Que semeasse o Amor em vós amores,
Se vossa condição produz abrolhos.
A Vós Seu Resplendor Deu Sol e Lua
Pelos raros extremos que mostrou
Em sábia Palas, Vénus em formosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Ásia as adorou.Aquele saber grande que juntou
Espírito e corpo em liga generosa,
Esta mundana máquina lustrosa
De só quatro elementos fabricou.Mas fez maior milagre a natureza
Em vós, Senhoras, pondo em cada uma
O que por todas quatro repartiu.A vós seu resplendor deu Sol e Lua:
A vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.
Imaginai Um Misto De Alvoradas
Imaginai um misto de alvoradas
Assim com uns vagos longes de falena,
Ou mesmo uns quês suaves de açucena
C’os magos prantos bons das madrugadas!…Imaginai mil cousas encantadas…
O tímido dulçor da tarde amena,
As esquisitas graças de uma Helena,
As vaporosas noites estreladas…Que encontrareis então em Julieta
O tipo são, fiel da Georgeta
Nos dois brilhantes, primorosos atos!…E sentireis um fluido magnético
Trêmulo, nervoso, mórbido, patético,
Bem como a voz dos langues psicattos!…
Diversos Dões Reparte O Céu Benino
Diversos dões reparte o Céu benino,
e quer que cada üa um só possua;
assi, ornou de casto peito a Lüa,
ornamento do assento cristalino.De graça, a Mãe fermosa do Minino,
que nessa vista tem perdido a sua;
Palas, de discrição, que imite a tua;
do valor, Juno, só de império dino.Mas junto agora o mesmo Céu derrama
em ti o mais que tinha, e foi o menos,
em respeito do Autor da natureza;que, a seu pesar, te dão, fermosa Dama,
Diana, honestidade, e graça, Vénus,
Palas o aviso seu, Juno a nobreza.
Basta, não Posso Mais, Mundo Enganoso!
Basta, não posso mais, Mundo enganoso!
Findaram para mim teus vãos prazeres.
Envelheci com eles, que mais queres
Deste escravo ancião, fraco e rugoso?Se o teu carro triunfal puxei, fogoso,
Quando inda forças tinha, nada esperes
Deste caduco mais: quanto fizeres
Para outra vez servir-te, é duvidoso.Enquanto não pensei, fui encantado:
Bebendo em taças de ouro o teu engano,
Eu fui, por ti, em bruto transformado.Graças, graças ao santo Desengano,
Que a forma de homem outra vez me há dado,
Livrando-me de um mágico tirano!
Amo-te Sem Saber Como
Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.
Encantamento
Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua dôce e angelica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlêvo perfeito e graça pura!E á força de sorrir, de me encantar,
Deante de ti, mimosa Creatura,
Suavemente sentia-me apagar…
E eu era sombra apenas e ternura.Que inocencia! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,E até meu proprio espirito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!
Amor
Por teu ventre começa a minha vida,
Por teus olhos a estrela que me guia.
Amor, que Deus te salve! — Ave-Maria
Cheia de Graça ó Bem-Aparecida.Por meu e por teu verbo de harmonia
Se fará eterna origem comovida
De outros frutos de Amor! — Ave-Maria,
Senhora da minh’alma apetecida.E meu sangue amoroso e produtivo
Se fará carne e espírito fecundo
À tua imagem noutro corpo vivo.E assim ambos, Amor, iremos ser
Seio da vida originando o mundo
Por teu ventre bendito de Mulher.
Súplica
Se tudo foge e tudo desaparece,
Se tudo cai ao vento da Desgraça,
Se a vida é o sopro que nos lábios passa
Gelando o ardor da derradeira prece;Se o sonho chora e geme e desfalece
Dentro do coração que o amor enlaça,
Se a rosa murcha inda em botão, e a graça
Da moça foge quando a idade cresce;Se Deus transforma em sua lei tão pura
A dor das almas que o ideal tortura
Na demência feliz de pobres loucos…Se a água do rio para o oceano corre,
Se tudo cai, Senhor! por que não morre
A dor sem fim que me devora aos poucos?