O Perfume
O que sou eu? – O Perfume,
Dizem os homens. – Serei.
Mas o que sou nem eu sei…
Sou uma sombra de lume!Rasgo a aragem como um gume
De espada: Subi. Voei.
Onde passava, deixei
A essência que me resume.Liberdade, eu me cativo:
Numa renda, um nada, eu vivo
Vida de Sonho e Verdade!Passam os dias, e em vão!
– Eu sou a Recordação;
Sou mais, ainda: a Saudade.
Sonetos sobre Homens
106 resultadosO Que Tu És…
És Aquela que tudo te entristece
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.Aquela que o sol claro entenebrece
A que nem sabe a estrada que ora trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!Mar-Morto sem marés nem ondas largas,
A rastejar no chão como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!És ano que não teve Primavera…
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!…
Julga-me a gente toda por perdido
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro na alma.
Cinco Sentidos
Cinco sentidos são os cinco dedos
Com que o homem tacteia a escuridão,
Rodeado de sombras e segredos
De que busca, e não acha, a solução.Mas decerto haverá mundos mais ledos
Onde outros seres, de maior visão,
Rompendo brumas, dissipando medos,
A treva finalmente vencerão.E sendo sete as cores, e outros tantos
Os sons da escala, mas com mil matizes
Que prolongam seu eco e seus encantos,Talvez nos seja um dia transmitido,
Por esses mundos fortes e felizes,
Um novo sexto e sétimo sentido!
Epitáfio
Caminhante que vais tão de corrida.
Pois em nada reparas na jornada.
Repara por tua vida no meu nada.
Que foi toda uma morte a minha vida.Também do mundo andei muito partida,´
Posto que em diligência mal parada,
E por não ser verdade incorporada
Uma mentira sou desvanecida.Eu tive ocupação sem exercício,
Eu fui mui conhecido sem ter nome,
Eu, ingrato, morri sem benefício.Exemplo toma de mim, ó pobre homem,
Que se tratares mal, vives de vício,
E se viveres bem, morres de fome
Camões III
Quando, torcendo a chave misteriosa
Que os cancelos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,Talvez uma visão resplandecente
Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba. que cantaria a ação famosa
Aos ouvidos da própria e estranha gente.E disse: “Se já noutra, antiga idade,
Tróia bastou aos homens, ora quero
Mostrar que é mais humana a humanidade.Pois não serás herói de um canto fero,
Mas vencerás o tempo e a imensidade
Na voz de outro moderno e brando Homero”.
Asa De Corvo
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa…Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza…É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte – a costureira funerária –
Cose para o homem a última camisa!
Arda De Raiva Contra Mim A Intriga
Arda de raiva contra mim a intriga,
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.Una-se todo, em traiçoeira liga,
Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.Sei rir-me da vaidade dos humanos;
Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.Durmo feliz sobre o suave riso
De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.
Os Enganos do Viver
REPETE A FRAGILIDADE DA VIDA E APONTA OS SEUS ENGANOS E OS SEUS INIMIGOS
Que outra verdade hav’rá senão pobreza
nesta vida tão frágil, leviana?
Os dois embustes são da vida humana,
no berço começando, honra e riqueza.O tempo, que não volta nem tropeça,
em horas fugitivas só a engana;
em errado ansiar, sempre tirana,
Fortuna faz cansar sua fraqueza.Vive morte calada e divertida
a própria vida; a saúde é guerra
por seu próprio alimento combatida.Oh, quanto, distraído, o homem erra:
que em terra teme ver tombar a vida
e não vê que, ao viver, caiu por terra!Tradução de José Bento
A Meu Pai Depois De Morto
Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!…Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!…Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
A Vida
“A Vida”
I
“…Mudarás, todos mudam, e os espinhos
com surpresa verás por todo lado,
– são assim nesta vida os seus caminhos
desde que o homem no mundo tem andado…Não hás de ser o eterno namorado
com as mãos e os lábios cheios de carinho,
– hoje, juntos os dois… tudo encantado!
– amanhã, tudo triste… os dois sozinhos!…E sentindo o teu braço então vazio,
abatido verás que não resistes
à inclemência do tempo úmido e frio!Rolarás por escarpas e barrancos:
sobre o epitáfio dos teus olhos tristes
trazendo a campa dos cabelos brancos!”
Nona Sinfonia
É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
Último Sonho De “soror Saudade
Àquele que se perdera no caminho…
Soror Saudade abriu a sua cela…
E, num encanto que ninguém traduz,
Despiu o manto negro que era dela,
Seu vestido de noiva de Jesus.E a noite escura, extasiada, ao vê-la,
As brancas mãos no peito quase em cruz,
Teve um brilhar feérico de estrela
Que se esfolhasse em pétalas de luz!Soror Saudade olhou…Que olhar profundo
Que sonha e espera?…Ah! como é feio o mundo,
E os homens vãos! — Então, devagarinho,Soror Saudade entrou no seu convento…
E, até morrer, rezou, sem um lamento,
Por Um que se perdera no caminho!…
Depois Da Orgia
O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!
A Angústia
Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
Lançadas para o céu vazio plas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
O Lupanar
Ali! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!Este logar, moços do mundo, vêde:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!É o afrodisíaco leito do hetairismo,
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!
Noli Me Tangere
A exaltação emocional do Gozo,
O Amor, a Glória, a Ciência, a Arte e a Beleza
Servem de combustíveis à ira acesa
Das tempestades do meu ser nervoso!Eu sou, por conseqüência um ser monstruoso!
Em minha arca encefálica indefesa
Choram as forças más da Natureza
Sem possibilidades de repouso!Agregados anômalos malditos
Despedaçam-se, mordem-se, dão gritos
Nas minhas camas cerebrais funéreas…Ai! Não toqueis em minhas faces verdes,
Sob pena, homens felizes, de sofrerdes
A sensação de todas as misérias!
Águas Da Saudade Para Dirson Costa Que O Musicou
Sou apenas um homem na paisagem
na tarde de silêncio e de mormaço.
Só o vento me anima na passagem
deixando no seu rosto o seu compasso.Sou apenas um poeta na viagem
olhando pelo olhar dos olhos baços
a distância que abriga vaga margem
das águas da saudade nos meus passos.Bem me quis esta vila que me habita,
e bem me dei de encantos nos seus becos.
Contudo, não cantei sua desdita.Dessa Manaus distante, restam crespas
pegadas, chão de rugas; minha pista
banhada em banzeiros do Rio Negro.
Camões I
Tu quem és? Sou O século que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A glória resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.Que cantou ele? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lira alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.Nobremente sofreu? Como homem forte.
Esta imensa oblação?… É-lhe devida.
Paga?… Paga-lhe toda a adversa sorte.Chama-se a isto? A glória apetecida.
Nós, que o cantamos?… Volvereis à morte.
Ele, que é morto?… Vive a eterna vida.
Maes, Vinde Ouvir!
Longe de ti, na cella do meu quarto,
Meu copo cheio de agoirentas fezes,
Sinto que rezas do Outro-mundo, harto,
Pelo teu filho. Minha Mãe, não rezes!Para fallar, assim, ve tu! já farto,
Para me ouvires blasphemar, ás vezes,
Soffres por mim as dores crueis do parto
E trazes-me no ventre nove mezes!Nunca me houvesses dado á luz, Senhora!
Nunca eu mamasse o leite aureolado
Que me fez homem, magica bebida!Fôra melhor não ter nascido, fôra,
Do que andar, como eu ando, degredado
Por esta Costa d’Africa da Vida…