Sonetos sobre Língua

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Sonetos de língua escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Anel de Corina

Enquanto espera a hora combinada
De o remeter com flores a Corina,
Ovídio oscúla o anel que lhe destina
E em que uma gema fulge bem gravada.

— « Como eu te invejo, ó prenda afortunada !
« Com ela vais dormir, mimosa e fina,
« Com ela has-de banhar-te na piscina
« Donde sairá, qual Venus, orvalhada,

« O dorso e o seio lhe verás de rosas,
« E selarás as cartas deliciosas
« Com que em minh’alma alento e esp’rança verte…

« E temendo (suprema f’licidade!)
« Que a cera adira á pedra, ai! então ha-de
« Com a ponta da língua humedecer-te! »

Quando não te Vejo Perco o Siso

Formosura do Céu a nós descida,
Que nenhum coração deixas isento,
Satisfazendo a todo pensamento,
Sem que sejas de algum bem entendida;

Qual língua pode haver tão atrevida,
Que tenha de louvar-te atrevimento,
Pois a parte melhor do entendimento,
No menos que em ti há se vê perdida?

Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra um paraíso,
Logo o engenho me falta, o espírito míngua.

Mas o que mais me impede inda louvar-te,
É que quando te vejo perco a língua,
E quando não te vejo perco o siso.

Há em Toda a Beleza uma Amargura

Há em toda a beleza uma amargura
secreta e confundida que é latente
ambígua indecifrável duplamente
oculta a si e a quem na olhar obscura

Não fica igual aos vivos no que dura
e a não pode entender qualquer vivente
qual no cabelo orvalho ou brisa rente
quanto mais perto mais se desfigura

Ficando como Helena à luz do ocaso
a língua dos dois reinos não lhe é azo
senão de apartar tranças ofuscante

Mas à tua beleza não foi dado
qual morte a abrir teu juvenil estado
crescer e nomear-se em cada instante?

Tradução de Vasco Graça Moura

O Lutador

Buscou no amor o bálsamo da vida,
Não encontrou senão veneno e morte.
Levantou no deserto a roca-forte
Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!

Depois de muita pena e muita lida,
De espantoso caçar de toda sorte,
Venceu o monstro de desmedido porte
– A ululante Quimera espavorida!

Quando morreu, línguas de sangue ardente,
Aleluias de fogo acometiam,
Tomavam todo o céu de lado a lado.

E longamente, indefinidamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!

Nossa Língua

para o poeta Antoniel Campos*

O doce som de mel que sai da boca
na língua da saudade e do crepúsculo
vem adoçando o mar de conchas ocas
em mansa voz domando tons maiúsculos.

É bela fiandeira em sua roca
tecendo a fala forte com seu músculo
na hora que é preciso sai da toca
como fera que sabe o tomo e o opúsculo.

Dizer e maldizer do mel ao fel
é fado de cantigas tão antigas
desde Camões, Bandeira a Antoniel,
este jovem poeta que se abriga

na língua portuguesa em verso e fala
nau de calado ao mar que não se cala.

* “filiu brasilis, mater portucale,
Que em outra língua a minha língua cale.”

Maldade

Tu podes ser igual a todo o mundo
teres defeitos mais que toda a gente,
– que importa ? se este amor cego e profundo
teima em dizer que te acha diferente!

Para mim (eu que te amo como um louco)
os que falam de ti são línguas más,
– ah! todo o amor que te dedico é pouco
e é sempre pouco o amor que tu me dás!

Sou a sombra que segue os teus desejos
e aos teus pés, numa oferta extraordinária
a minha alma vendeu-se por teus beijos…

Falam de ti… Escuto-os… Fico mudo…
Quanta maldade cruel, desnecessária
se eu já sei quem tu és… se eu sei de tudo!

Ars Poética

Nesse afago do meu fado afogado
as águas já me sabem nadador.
A rês na travessia marejada
gado da grei de um mar revelador.

Vou e volto lambendo o sal do fardo
língua no labirinto, ardendo em cor
furtiva, enquanto messe temperada,
da tribo das palavras sou cantor.

Procuro em frio exílio tipográfico
o verbo mais sonoro em melodia
o ritmo para a cal de um pasto cáustico.

Sou boi e sou vaqueiro dia a dia
no laço entrelaçado fiz-me prático
catador de capins nas pradarias.

Quando Eu, Senhora, Em Vós Os Olhos Ponho

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho.

Isto passado, quando me desponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
Quando m’era mister tant’ outr’ ajuda,
de que me valerei, se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.

Por Consoantes Que Me Deram Forçadas

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa, se inculca por tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vaso a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, em epa, em ipa, em opa, em upa.

Bolero Das Águas

O passo no compasso dois por quatro
acode meu suplício de afogado
afastando de mim sedento cálice
em submerso bolero de águas tantas.

A sede dança seca na garganta
curtindo signos, fala ressequida
para a língua de couro, lixa tântala,
alisando palavras rebuçadas.

Quanto alfenim no alfanje que se enfeita
para montar as ancas de égua moura.
Lábia flamenca lambe leve as oiças,

é rito muezim ditando a dança:
no dois pra cá me levo em dois pra lá,
nas águas do regaço vou-me e lavo-me.

Viverás, que da Pena a Força Emana

Ou pra fazer-te o epitáfio vivo,
ou vives mais e a terra me apodrece.
Tua memória a morte deste arquivo
não tira, mas de mim o resto esquece.

Aqui terá o teu nome imortal gala,
indo eu, hei-de ficar do mundo oculto,
só pode dar-me a terra comum vala,
no olhar dos homens tu serás sepulto.

Meus versos monumento te serão
que hão-de ler e reler olhos a vir
e as línguas a haver repetirão

o que és, quando já ninguém respire.
Viverás, que da pena a força emana,
onde o sopro mais sopra, em boca humana.

Cantares Bacantes (I)

O mar lava a concha cava
e cava concha lava o mar
como a língua limpa lava
tua concha antes de amar.

Delírio da estrela d’alva
mistério da preamar
vinda e volta abrindo a aldrava
da concha do paladar.

Oh minhas parcas de mel!
Eu me afogo em mar vinho
à espera de algum batel.

Sou cantador de cordel:
estórias sabor marinho
bacantes da moscatel.

Redenção

I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n’um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento…

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha…
Almas irmãs da minha, almas cativas!

II

Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares…

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D’esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares…

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão…
E acabará por fim vosso tormento.

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Soneto XXXIX

Argos para outras cousas, Polifemo
Só para esta, despois que a noite abraça,
Que astuto caçador da surda caça,
Que sereia te pôs em tanto extremo?

Torna mancebo em ti, que a vida temo
Te seja a sombra deste teixo escassa,
Ou qual figueira ao touro te desfaça
O lustre, o brio, o teu valor supremo.

Deixa seco e sem glória o tronco verde
Com seus torcidos nós a branca hera,
Este de honra, ser, vida, te despoja.

Porque despois não digas “quem soubera?”
O nome funeral de quem te perde,
Se ousa a língua dizê-lo, aqui se arroja.

Soneto de amor

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma… Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas…
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua…, — unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois… — abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada…
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

Correspondências

A natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tem vasta como a noite a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se

Há perfumes subtis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
E outros, de corrupção, ricos e triunfais

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d’um clarim.

Tradução de Delfim Guimarães

Em Sórdida Masmorra Aferrolhado

Em sórdida masmorra aferrolhado,
De cadeias aspérrimas cingido,
Por ferozes contrários perseguido,
Por línguas impostoras criminado:

Os membros quase nus, o aspecto honrado
Por vil boca, e vil mão roto, e cuspido,
Sem ver um só mortal compadecido
De seu funesto, rigoroso estado:

O penetrante, o bárbaro instrumento
De atroz, violenta, inevitável morte
Olhando já na mão do algoz cruento:

Inda assim, não maldiz a iníqua sorte
Inda assim tem prazer, sossego, alento,
O sábio verdadeiro, o justo, o forte.

Demônios

A língua vil, ignívoma, purpúrea
Dos pecados mortais bava e braveja,
Com os seres impoluídos mercadeja,
Mordendo-os fundo injúria por injúria.

É um grito infernal de atroz luxúria,
Dor de danados, dor do Caos que almeja
A toda alma serena que viceja,
Só fúria, fúria, fúria, fúria, fúria!

São pecados mortais feitos hirsutos
Demônios maus que os venenosos frutos
Morderam com volúpia de quem ama…

Vermes da Inveja, a lesma verde e oleosa,
Anões da Dor torcida e cancerosa,
Abortos de almas a sangrar na lama!

Quanto é Melhor Calar, que Ser Ouvido

Silêncio divinal, eu te respeito!
Tu, meu Numen serás, serás meu guia
Se até ‘qui, insensato, errei a via
De Harpócrates, quebrando o são preceito,

Hoje à vista do mal que tenho feito,
Em ser palreira pega em demasia,
Abraçarei a sã Filosofia
Pitagórica escola de proveito.

Tenho visto que males tem nascido
Pelo muito falar: tenho sondado
Quanto é melhor calar, que ser ouvido.

Minha língua vai ter férreo cadeado.
Eu a quero enfrear, arrependido
De tanto sem proveito ter falado.

Soneto Quebradiço

Mão minha com maminha movediça
traçando vai na limpa areia branca
versos cambaios, frouxos, na liça
língua caçanje, claudicante, manca.

No pé quebrado o ritmo se atiça
para dançar com rimas pobres, franca
trança de cambalhota tão cediça,
que me corrompe o salto e que me estanca.

Queda de braço nas quebradas quebras
vou me quebrando como um bardo gauche:
pelas savanas sou mais uma zebra.

Mas consciente desse torto approuch
já me socorre a gíria de alma treta
para solar meu solo nos ouvidos moucos.