Sonetos de Luís de CamÔes

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Sonetos de Luís de CamÔes. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

Este Amor Que Vos Tenho, Limpo E Puro

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tĂȘ-lo dentro nesta alma sĂł procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado,
nem o supremo bem ou baixo estado,
nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio
deita, sĂł para meu amor Ă© sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e que essa ingratidĂŁo tudo me enjeita,
traz este meu amor sempre em desmaio.

Onde acharei lugar tĂŁo apartado

Onde acharei lugar tĂŁo apartado
E tĂŁo isento em tudo da ventura,
Que, nĂŁo digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitĂĄria, triste e escura,
Sem fonte clara ou plĂĄcida verdura,
Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente;

Que, pois a minha pena Ă© sem medida,
Ali triste serei em dias ledos
E dias tristes me farĂŁo contente.

A Dor da AusĂȘncia Fica Mais Pequena

Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me experimentar, de vĂłs me aparte,
Deixando de meu bem tĂŁo grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena,

O duro desfavor, que me condena,
Quando pela memĂłria se reparte,
Endurece os sentidos de tal arte
Que a dor da ausĂȘncia fica mais pequena.

Mas como pode ser que na mudança
Daquilo que mais quero, este tĂŁo fora
De me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão åspera esquivança,
Porque mais sentirei partir, Senhora,
Sem sentir muito a pena da partida.

Apartava-Se Nise De Montano

Apartava-se Nise de Montano,
em cuja alma partindo-se ficava;
que o pastor na memĂłria a debuxava,
por poder sustentar-se deste engano.

Pelas praias do Índico Oceano
sobre o curvo cajado s’encostava,
e os olhos pelas ĂĄguas alongava,
que pouco se doĂ­am de seu dano.

Pois com tamanha mĂĄgoa e saudade
(dezia) quis deixar-me a que eu adoro,
por testemunhas tomo CĂ©u e estrelas.

Mas se em vĂłs, ondas, mora piedade,
levai também as lågrimas que choro,
pois assi me levais a causa delas!

Porque Quereis, Senhora, Que Ofereça

Porque quereis, Senhora, que ofereça
a vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que mereço,
bem por nascer estå quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,
que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor que em baixo preço
tão alto pensamento se conheça.

Assi que a paga igual de minhas dores,
com nada se restaura, mas deveis ma,
por ser capaz de tantos disfavores.

E se o valor de vossos servidores
houver de ser igual convosco mesma,
vĂłs sĂł convosco mesma andai d’amores.

Do Viver me Desapossa aquele Riso com que a Vida Dais

Formosos olhos, que na idade nossa
Mostrais do CĂ©u certĂ­ssimos sinais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que do viver me desapossa
Aquele riso com que a vida dais;
Vereis como de Amor nĂŁo quero mais,
Por mais que o tempo corra, o dano possa.

E se ver-vos nesta alma, enfim, quiserdes,
Como num claro espelho, ali vereis
Também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que, sĂł por me nĂŁo verdes,
Ver-vos em mim, Senhora, nĂŁo quereis:
Tanto gosto levais de minha pena!

Transforma-se o Amador na Cousa Amada

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
NĂŁo tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela estĂĄ minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma estĂĄ liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co’a alma minha se conforma,

EstĂĄ no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.

Ditoso Seja Aquele Que Somente

Ditoso seja aquele que somente
se queixa de amorosas esquivanças;
ois por elas não perde as esperanças
de poder n’algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,
não sente mais que a pena das lembranças;
porqu’, inda que se tema de mudanças,
menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado
onde enganos, desprezos e isenção
trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
d’erros em que nĂŁo pode haver perdĂŁo,
sem ficar n’alma a mĂĄgoa do pecado.

Que Poderei Do Mundo JĂĄ Querer

Que poderei do mundo jĂĄ querer,
que naquilo em que pus tamanho amor,
nĂŁo vi senĂŁo `desgosto e desamor,
e morte, enfim, que mais nĂŁo pode ser!

Pois vida me nĂŁo farta de viver,
pois jĂĄ sei que nĂŁo mata grande dor,
se cousa hĂĄ que mĂĄgoa dĂȘ maior,
eu a verei; que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou
de quanto mal me vinha; jĂĄ perdi
o que perder o medo me ensinou.

Na vida desamor somente vi,
na morte a grande dor que me ficou:
parece que para isto sĂł nasci!

Do Tempo que Fui Livre me Arrependo

O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.

Amor ali, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Com uma rara e angélica figura
A vista da razĂŁo me salteava.

Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, nĂŁo sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia,

Deixei-me cativar; mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.

Cara Minha Inimiga, Em Cuja MĂŁo

Cara minha inimiga, em cuja mĂŁo
pĂŽs meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.

Eternamente as ĂĄguas lograrĂŁo
a tua peregrina fermosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh’alma te acharĂŁo.

E se meus rudos versos podem tanto
que possam prometer te longa histĂłria
daquele amor tĂŁo puro e verdadeiro,

celebrada serĂĄs sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memĂłria,
serĂĄ minha escritura teu letreiro.

Somente se Queixa de Amorosas Esquivanças

Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porqu’inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem um coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
De erros em que nĂŁo pode haver perdĂŁo
Sem ficar na alma a mĂĄgoa do pecado.

Apolo E As Nove Musas, Discantando

Apolo e as nove Musas, discantando
com a dourada lira, me influĂ­am
na suave harmonia que faziam,
quando tomei a pena, começando:

-Ditoso seja o dia e hora, quando
tĂŁo delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
estar se em seu desejo traspassando!

Assi cantava, quando Amor virou
a roda à esperança, que corria
tĂŁo ligeira que quase era invisĂ­vel.

Converteu se me em noite o claro dia;
e, se algĂŒa esperança me ficou,
serĂĄ de maior mal, se for possĂ­vel.

Na Desesperação Jå Repousava

Na desesperação jå repousava
o peito longamente magoado,
e, com seu dano eterno concertado,
jĂĄ nĂŁo temia, jĂĄ nĂŁo desejava;

quando ĂŒa sombra vĂŁ me assegurava
que algum bem me podia estar guardado
em tĂŁo fermosa imagem que o treslado
n’alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que då tão facilmente
o coração åquilo que deseja,
quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh! deixem-me enganar, que eu sou
contente; que, posto que maior meu dano seja,
fica-me a glĂłria jĂĄ do que imagino.

Quem diz que Amor Ă© falso ou enganoso

Quem diz que Amor Ă© falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vĂŁo desconhecido,
Sem falta lhe terĂĄ bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor Ă© brando, Ă© doce, e Ă© piedoso.
Quem o contrĂĄrio diz nĂŁo seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vĂȘem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras sĂŁo de Amor;
Todos os seus males sĂŁo um bem,
Que eu por todo outro bem nĂŁo trocaria.

Fermosos Olhos Que Na Idade Nossa

Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do CĂ©u certissimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor nĂŁo quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest’alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que sĂł por nĂŁo me verdes,
ver vos em mim, Senhora, nĂŁo quereis:
tanto gosto levais de minha pena!

Amor, Co A Esperança Jå Perdida

Amor, co a esperança jå perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrĂĄgio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruĂ­da
me tens a glĂłria toda que alcancei?
Não cuides de forçar me, que não sei
tornar a entrar onde nĂŁo hĂĄ saĂ­da.

VĂȘs aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda nĂŁo estĂĄs de mim vingado,
contenta te com as lĂĄgrimas que choro.

Sem Causa, Juntamente Choro e Rio

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Num’ hora acho mil anos, e Ă© de jeito
Que em mil anos nĂŁo posso achar um’ hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que sĂł porque vos vi, minha Senhora.

Vejo que nem um Breve Engano Posso Ter

Quando de minhas mĂĄgoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece,
Que para mi foi sonho nesta vida.

LĂĄ numa soidade, onde estendida
A vista por o campo desfalece,
Corro apĂłs ela; e ela entĂŁo parece
Que mais de mi se alonga, compelida.

Brado: − Não me fujais, sombra benina. −
Ela (os olhos em mi c’um brando pejo,
Como quem diz que jĂĄ nĂŁo pode ser)

Torna a fugir-me; torno a bradar: − Dina…
E antes que diga mene, acordo, e vejo
Que nem um breve engano posso ter.

Amor Ă© um Fogo que Arde sem se Ver

Amor Ă© um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos coraçÔes humanos amizade,
Se tĂŁo contrĂĄrio a si Ă© o mesmo Amor?