Sonho Africano
Ei-lo em sua choupana. A lâmpada, suspensa
Ao teto, oscila; a um canto, um velho e ervado fimbo;
Entrando, porta dentro, o sol forma-lhe um nimbo
Cor de cinábrio em torno Ă carapinha densa.Estira-se no chĂŁo… Tanta fadiga e doença!
Espreguiça, boceja… O apagado cachimbo
Na boca, nessa meia escuridĂŁo de limbo,
Mole, semicerrando os dĂşbios olhos, pensa…Pensa na pátria, alĂ©m… As florestas gigantes
Se estendem sob o azul, onde, cheios de mágoa,
Vivem negros reptis e enormes elefantes…Calma em tudo. Dardeja o sol raios tranquilos…
Desce um rio, a cantar… Coalham-se Ă tona d’água
Em compacto apertĂŁo, os velhos crocodilos…
Sonetos sobre Negros
102 resultadosÓ Máquinas Febris
Ó máquinas febris! eu sinto a cada passo,
nos silvos que soltais, aquele canto imenso,
que a nova geração nos lábios traz suspenso
como a estância viril duma epopeia d’aço!Enquanto o velho mundo arfando de cansaço
prostrado cai na luta; em fumo negro e denso
levanta-se a espiral desse moderno incenso
que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
mordeis o pedestal da velha Majestade!E as grandes combustões que sempre vos consomem
começam, num cadinho, a refundir o homem
fazendo ressurgir mais larga a Humanidade!
Negra Fera, Que A Tudo As Garras Lanças
Negra fera, que a tudo as garras lanças,
Já murchaste, insensĂvel a clamores,
Nas faces de Tirsália as rubras flores,
Em meu peito as viçosas esperanças.Monstro, que nunca em teus estragos cansas,
Vê as três Graças, vê os nus Amores
Como praguejam teus cruéis furores,
Ferindo os rostos, arrancando as tranças!DomicĂlio da noute, horror sagrado,
Onde jaz destruĂda a formosura,
Abre-te, dá lugar a um desgraçado.Eis desço, eis cinzas palpo… Ah, Morte dura!
Ah, Tirsália! Ah, meu bem, rosto adorado!
Torna, torna a fechar-te, Ăł sepultura!
Quinze Anos
Eu amo a vasta sombra das montanhas,
Que estendem sobre os largos continentes
Os seus braços de rocha negra, ingentes,
Bem como braços colossais aranhas.D’ali o nosso olhar vĂŞ tĂŁo estranhas
Coisas, por esse céu! e tão ardentes
Visões, lá n’esse mar de ondas trementes!
E Ă s estrelas, d’ali, vĂŞ-as tamanhas!Amo a grandeza misteriosa e vasta…
A grande ideia, como a flor e o viço
Da árvore colossal que nos domina…Mas tu, criança, sĂŞ tu boa… e basta:
Sabe amar e sorrir… Ă© pouco isso?
Mas a ti sĂł te quero pequenina!
Meu Pai
A Eloy
Desce, meu Pai, a noite baixou mansa.
Nem uma nuvem se vê mais no céu:
Aninharam-se aqui no peito meu,
Onde, chorando, a negra dor descansa.Quando morreste eu era bem criança,
Balbuciava, sim, o nome teu,
Mas d’este rosto santo que morreu
Já nĂŁo conservo a mĂnima lembrança.A noite Ă© clara; e eu, aqui sentada,
Tenho medo da lua embalsamada,
Corta-me o frio a alma comovida.Se lá no Céu teu coração padece,
Vem comigo rezar a mesma prece:
Tua bênção, meu pai, me dará vida!
VĂtima Do Dualismo
Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas cĂ©lulas sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada Ă s bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E Ă gula negra das antinomias!PsiquĂŞ biforme, o CĂ©u e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
Em que Emprego o Meu Tempo?
Em que emprego o meu tempo? Vou e venho,
Sem dar conta de mim nem dos pastores,
Que deixam de cantar os seus amores,
Quando passo e lhes mostro a dor que tenho.É de tristezas o torrão que amanho,
Amasso o negro pĂŁo com dissabores,
Em ribeiros de pranto pesco dores,
E guardo de saudades um rebanho.Meu coração à doce paz resiste,
E, embora fiqueis crendo que motejo,
Alegre vivo por viver tĂŁo triste!Amor se mostra nesta dor que abrigo:
Quero triste viver, pois vos nĂŁo vejo,
Nem sequer muito ao longe vos lobrigo.
Serpente De Cabelos
A tua trança negra e desmanchada
Por sobre o corpo nu, torso inteiriço,
Claro, radiante de esplendor e viço,
Ah! lembra a noite de astros apagada.LuxĂşria deslumbrante e aveludada
Através desse mármore maciço
Da carne, o meu olhar nela espreguiço
Felinamente, nessa trance ondeada.E fico absorto, num torpor de coma,
Na sensação narcótica do aroma,
Dentre a vertigem túrbida dos zeros.És a origem do Mal, és a nervosa
Serpente tentadora e tenebrosa,
Tenebrosa serpente de cabelos!…
Irradiações
Às crianças
Qual da amplidão fantástica e serena
Ă€ luz vermelha e rĂştila da aurora
Cai, gota a gota, o orvalho que avigora
A imaculada e cândida açucena.Como na cruz, da triste Madalena
Aos pés de Cristo, a lágrima sonora
Caia, rolou, qual bálsamo que irrora
A negra mágoa, a indefinida pena…Caia por vĂłs, esplĂŞndidas crianças
Bando feliz de castas esperanças,
Sonhos da estrela no infinito imersas;Caia por vĂłs, as mĂşsicas formosas,
Como um dilĂşvio matinal de rosas,
Todo o luar benéfico dos versos!
Cenas De EscravidĂŁo
Acabara o castigo… áspero, cavo,
Cheio de angĂşstia um grito lancinante
Estala atroz na boca hirta, arquejante;
Na boca negra, esquálida do escravo…O seu algoz… oh! nĂŁo — Ăntimo travo
O seu olhar espelha — rubro, iriante…
É um escravo também, brônzeo, possante;
Arfa-lhe em dor o peito largo e bravo!Cumprira as ordens do Senhor… tremente,
Fita o infeliz, calcado ao chĂŁo, dolente,
Velado o olhar num dolorido brilho…Fita-o… depois, num Ămpeto sublime
Ergue-o; no peito cálido o comprime,
Cinge-o a chorar — Meu filho! pobre filho!
Visões Da Noite
Passai tristes fantasmas! O que Ă© feito
Das mulheres que amei, gentis e puras?
Umas devoram negras amarguras,
Repousam outras em marmóreo leito!Outras no encalço de fatal proveito
Buscam Ă noite as saturnais escuras,
Onde empenhando as murchas formosuras
Ao demônio do ouro rendem preito!Todas sem mais amor! sem mais paixões!
Mais uma fibra trĂŞmula e sentida!
Mais um leve calor nos corações!Pálidas sombras de ilusão perdida,
Minh’alma está deserta de emoçoes,
Passai, passai, nĂŁo me poupeis a vida!
Anseios
Meu doido coração aonde vais,
No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha cais!Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais
NĂŁo valem o prazer duma saudade!Tu chamas ao meu seio, negra prisĂŁo!…
Ai, vê lá bem, ó doido coração,
NĂŁo te deslumbre o brilho do luar!NĂŁo estendas tuas asas para o longe…
Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar!…
Apostrofe À Carne
Quando eu pego nas carnes do meu rosto.
Pressinto o fim da orgânica batalha:
– Olhos que o hĂşmus necrĂłfago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…E o Homem – negro e heterĂłclito composto,
Onde a alva flama psĂquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!Carne, feixe de mĂ´nadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,DĂłi-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!
Boca Imortal
Abre a boca mordaz num riso convulsivo
Ă“ fera sensual, luxuriosa fera!
Que essa boca nervosa, em riso de pantera,
Quando ri para mim lembra um capro lascivo.Teu olhar dá-me febre e dá-me um brusco e vivo
Tremor as carnes, que eu, se ele em mim reverbera,
Fico aceso no horror da paixĂŁo que ele gera,
Inflamada, fatal, dum sangue rubro e ativo.Mas a boca produz tais sensações de morte,
O teu riso, afinal, Ă© tĂŁo profundo e forte
E tem de tanta dor tantas negras raĂzes;Rigolboche do tom, Ăł flor pompadouresca!
Que és, para mim, no mundo, a trágica e dantesca
Imperatriz da Dor, entre as imperatrizes!
Se ao Mundo Predissesses teu Morrer
Se ao mundo predissesses teu morrer
na morte a natureza ir-te-ia Ă frente
volvendo com mandado intransigente
no eterno esquecimento o próprio serO céu se rosaria docemente
por do teu corpo a roupa enfim descer
florestas tingiria o teu sofrer
de negro e a noite o mar barca silenteLuto sem nome com estrelas mede
a estela ao teu olhar no arco celeste
e a escuridĂŁo de espesso muro impedeque a luz da nova primavera preste
A estação vê nos astros que pararam
as cisternas que a morte te espelharam.Tradução de Vasco Graça Moura
Frémito do Meu Corpo a Procurar-te
Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mĂŁos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
DoĂdo anseio dos meus braços a abraçar-te,Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!E vejo-te tĂŁo longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que nĂŁo me amas…E o meu coração que tu nĂŁo sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas…
Sobre Estas Duras, Cavernosas Fragas
Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estĂŁo negras paixões n’alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.Razão feroz, o coração me indagas,
De meus erros e sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objectos de horror co’a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me nĂŁo amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.
O Assinalado
Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra Ă© sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas etrenas, pouco a pouco…Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
Esquecimento
Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.Tudo em redor entĂŁo escureceu,
E foi longĂnqua toda a claridade!
Ceguei…tacteio sombras…que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!Descem em mim poentes de Novembro…
A sombra dos meus olhos, a escurecer…
Veste de roxo e negro os crisântemos…E desse que era meu já me nĂŁo lembro…
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!…
O Fim Das Coisas
Pode o homem bruto, adstricto Ă ciĂŞncia grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Das profundezas do Subconsciente
O milagre estupendo da aeronave!Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente
De perscrutar o Ăntimo do orbe, invente
A limpada aflogĂstica de Davy!Em vĂŁo! Contra o poder criador do Sonho
O Fim das Coisas mostra-se medonho
Como o desaguadouro atro de um rio …E quando, ao cabo do Ăşltimo milĂŞnio,
A humanidade vai pesar seu gĂŞnio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!