Sonetos sobre Ninguém de Carlos Drummond de Andrade

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Sonetos de ninguém de Carlos Drummond de Andrade. Leia este e outros sonetos de Carlos Drummond de Andrade em Poetris.

Oficina Irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difĂ­cil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, nĂŁo ser.

Esse meu verbo antipĂĄtico e impuro
hĂĄ de pungir, hĂĄ de fazer sofrer,
tendĂŁo de VĂȘnus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrarå: tiro no muro,
cĂŁo mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

A Castidade com que Abria as Coxas

A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tĂŁo estrita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tĂŁo vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substĂąncia esvaĂ­da,
eu não era ninguém e era mil seres

em mim ressuscitados. Era AdĂŁo,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chĂŁo.
E nem restava mais o mundo, Ă  beira
dessa moita orvalhada, nem destino.

Destruição

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto nĂŁo se vĂȘem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que sĂŁo? Dois inimigos.

Amantes sĂŁo meninos estragados
pelo mimo de amar: e nĂŁo percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.