Oficina Irritada
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difĂcil de ler.Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, nĂŁo ser.Esse meu verbo antipĂĄtico e impuro
hĂĄ de pungir, hĂĄ de fazer sofrer,
tendĂŁo de VĂȘnus sob o pedicuro.NinguĂ©m o lembrarĂĄ: tiro no muro,
cĂŁo mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.
Sonetos sobre Ninguém de Carlos Drummond de Andrade
3 resultadosA Castidade com que Abria as Coxas
A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tĂŁo estrita, como se alargava.Ah, coito, coito, morte de tĂŁo vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substĂąncia esvaĂda,
eu não era ninguém e era mil seresem mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.Roupa e tempo jaziam pelo chĂŁo.
E nem restava mais o mundo, Ă beira
dessa moita orvalhada, nem destino.
Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto nĂŁo se vĂȘem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que sĂŁo? Dois inimigos.Amantes sĂŁo meninos estragados
pelo mimo de amar: e nĂŁo percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.