Esfinge
Sou filha da charneca erma e selvagem.
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d’oiro, p’los caminhos,
Desta minh’alma ardente são a imagem.Embalo em mim um sonho vão, miragem:
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!E à noite, à hora doce da ansiedade
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da saudade…E à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar…
Esfinge olhando a planície enorme…
Sonetos sobre Noite
328 resultadosChoro De Vagas
Não é de águas apenas e de ventos,
No rude som, formada a voz do Oceano.
Em seu clamor – ouço um clamor humano;
Em seu lamento – todos os lamentos.São de náufragos mil estes acentos,
Estes gemidos, este aiar insano;
Agarrados a um mastro, ou tábua, ou pano,
Vejo-os varridos de tufões violentos;Vejo-os na escuridão da noite, aflitos,
Bracejando ou já mortos e de bruços,
Largados das marés, em ermas plagas…Ah! que são deles estes surdos gritos,
Este rumor de preces e soluços
E o choro de saudades destas vagas!
Ângelus
Desmaia a tarde. Além, pouco e pouco, no poente,
O sol, rei fatigado, em seu leito adormece:
Uma ave canta, ao longe; o ar pesado estremece
Do Ângelus ao soluço agoniado e plangente.Salmos cheios de dor, impregnados de prece,
Sobem da terra ao céu numa ascensão ardente.
E enquanto o vento chora e o crepúsculo desce,
A ave-maria vai cantando, tristemente.Nest’hora, muita vez, em que fala a saudade
Pela boca da noite e pelo som que passa,
Lausperene de amor cuja mágoa me invade,Quisera ser o som, ser a noite, ébria e douda
De trevas, o silêncio, esta nuvem que esvoaça,
Ou fundir-me na luz e desfazer-me toda.
Uma Doença Cúmplice
uma doença cúmplice, marcas púrpura
dão ao teu rosto a expressão do exílio
a que te submetes, gemeste
toda a noite, soçobrasteà febre alta do final da tarde, uma prega,
vincada no teu rosto,
mantém-te inanimado
entre a vigília e a injúriaque há no sacrifício
e te põe a carne em chaga.
uma doença altiva, a consistênciado silêncio é como aço e o transe
permanece, é superiormente excessiva
tanta angústia.
A Rua Dos Cataventos – XVII
Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
Variação Sobre Um Soneto De Shakespeare
És como um dia cálido de estio…
Azul? Não, és mais linda e mais amena
O verão como tudo traz o frio
E o verão é inconstante, e tu serena.Tu não trazes o frio, nem a pena
Da luz foste – tu vives, como um rio
Que cantasse uma mesma cantilena
Num sempre novo manso desvario.Não morre o estio em ti – e no teu rosto
Ele deixou as cores da manhã
E as tristezas suaves do sol-posto.Sem as marcas cruéis da noite vã.
E a morte que em ser também se deita
Em tua alma descansa satisfeita.
Toada Para Solo De Ocarina
Fio tênue do céu em claridade
tece esse manto gris meu agasalho
colhido pelos muros da cidade:
mucosa verde musgo que se espalhacomo tapete denso em chão de jade
Meus pés de crivo cravam esse atalho
riscando seu grafite no mar que arde
o fogo-de-santelmo em céu talhadoNesse caminho caio em minha sina
caio no mar que lava essa lavoura
num barco ébrio que sempre desafinaE colho o sal da noite a lua moura
crescente luz de foice me assassina
e me morro no haxixe com Rimbaud
Despede Teu Pudor
Despede teu pudor com a camisa
E deixa alada louca sem memória
Uma nudez nascida para a glória
Sofrer de meu olhar que te heroízaTudo teu corpo tem, não te humaniza
Uma cegueira fácil de vitória
E como a perfeição não tem história
São leves teus enredos como a brisaConstante vagaroso combinado
Um anjo em ti se opõe à luta e luto
E tombo como um sol abandonadoEnquanto amor se esvai a paz se eleva
Teus pés roçando nos meus pés escuto
O respirar da noite que te leva.
O Que Diz A Morte
Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem…Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem. –Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.
Invocação à Noite
Ó deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importantes astros vigilantes:Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio de Ritália melindroso;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem d’amor os sôfregos instantes:Tétis formosa, tal encanto inspire
Ao namorado Sol teu níveo rosto,
Que nunca de teus braços se retire!Tarda ao menos o carro à Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.
Arrependimento
Deste amor torturado e sem ventura
Resta-me o alívio do arrependimento.
O pouco que me deste de ternura
Não vale o que te dei de encantamento.Abri para o teu sonho o firmamento,
Semeei de estrelas tua noite escura.
Dei-te alma, exaltação e sentimento.
Fiz de um bloco de pedra uma criatura.Hoje, ambos à mercê de sorte avessa,
Se para te esquecer luto e me esforço,
Manda-me o coração que não te esqueça.Padecemos idêntico suplício:
Tu – corroída de pena e de remorso,
Eu – com vergonha do meu sacrifício.
Quem aos Olhos Dar-me-á uma Vertente
Quem aos olhos dar-me-á uma vertente
de lágrimas, que manem noite e dia?
Ao menos a alma, enfim, respiraria,
chorando, ora o passado, ora o presente.Quem me dará, longe de toda gente,
suspiros, que me valham na agonia
já longa, que o afã tanto encobria?
Sucedeu-me depois tanto acidente!Quem me dará palavras com que iguale
tanto agravo que amor já me tem feito,
pois que tão pouco o sofrimento vale?Ah! quem ao meio me abra este meu peito,
onde jaz tanto mal, por que se exale
tamanha coita minha e meu despeito?
Este Retrato Vosso é o Sinal
Este retrato vosso é o sinal
ao longe do que sois, por desamparo
destes olhos de cá, porque um tão claro
lume não pode ser vista mortal.Quem tirou nunca o sol por natural?
Nem viu, se nuvens não fazem reparo,
em noite escura ao longe aceso um faro?
Agora se não vê, ora vê mal.Para uns tais olhos, que ninguém espera
de face a face, gram remédio fora
acertar o pintor ver-vos sorrindo.Mas inda assim não sei que ele fizera,
que a graça em vós não dorme em nenhuma hora.
Falando que fará? Que fará rindo?
Saudade do Teu Corpo
Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?…Anda a saudade do teu corpo (sentes?…)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: «vem, meu todo amado…»É o teu corpo em sombra esta saudade…
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade…Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra…
Vês?! A saudade é um escultor antigo!
Lamento do Poeta Objectivo
Anda-me o amor tomando a própria vida,
como se, amando, eu existisse mais.
E leva-me o Destino em voz traída,
como se houvera encontros desiguais.A multidão me cerca, e, renascida,
já dela terei fome de sinais.
E, mal a noite se demora ardida,
o medo e a solidão me esfriam taisas cinzas desse amor que sacrifico.
Não é futura a só miséria. A queixa
também não é: e apenas aconteceno vácuo imenso que este amor me deixa,
quando maior, quando de si mais rico,
se dá de mundo em mundo, e lá me esquece.
As Mãos
Brandamente escrevem dos espasmos do sol.
Envelhecem do pulso ao cérebro, ao calor baço
de um revérbero no eixo dos ventos, usura
das máscaras que, sucessivamente, as transformamde consciência em cal ou metal obscuro.
E já não é por si que a presença existe ou
subsiste o que separa. Destroem as sementes,
apodrecem como um sopro e não são remansona areia ou domadoras de chamas. Igualam-se
à água, para serem raiz do que se cala
e insinuam-se, para sempre, no pó da noite.Um castelo de pele tomba. Deixam de ser
nomeadas ou nome. Escrevem, brandamente,
do termo da música o luto do silêncio.
Flores Da Lua
Brancuras imortais da Lua Nova
Frios de nostalgia e sonolência…
Sonhos brancos da Lua e viva essência
Dos fantasmas noctívagos da Cova.Da noite a tarda e taciturna trova
Soluça, numa tremula dormência…
Na mais branda, mais leve florescência
Tudo em Visões e Imagens se renova.Mistérios virginais dormem no Espaço,
Dormem o sono das profundas seivas,
Monótono, infinito, estranho e lasso…E das Origens na luxúria forte
Abrem nos astros, nas sidéreas leivas
Flores amargas do palor da Morte.
Em uma Tarde de Outono
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono… Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto…Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos…
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol…
A Vida
“A Vida”
III
“… A vida é assim, segue e verás, – a vida
é um dia de esperança, um longo poente
de incertezas cruéis, e finalmente
a grande noite estranha e dolorida…Hoje o sol, hoje a luz, hoje contente
a estrada a percorrer suave e florida…
– amanhã, pela sombra, inutilmente
outra sombra a vagar, triste e perdida…A vida é assim, é um dia de esperança
uma réstia de luz entre dois ramos
que a noite envolve cedo, sem tardança…E enquanto as sombras chegam, nós, ao vê-las,
ainda somos felizes e encontramos
a saudade infinita das estrelas!…”
Soneto Sentimental À Cidade De São Paulo
Ó cidade tão lírica e tão fria!
Mercenária, que importa – basta! – importa
Que à noite, quando te repousas morta
Lenta e cruel te envolve uma agoniaNão te amo à luz plácida do dia
Amo-te quando a neblina te transporta
Nesse momento, amante, abres-me a porta
E eu te possuo nua e frígida.Sinto como a tua íris fosforeja
Entre um poema, um riso e uma cerveja
E que mal há se o lar onde se esperaTraz saudade de alguma Baviera
Se a poesia é tua, e em cada mesa
Há um pecador morrendo de beleza?