Sonetos sobre Olhar de Euclides da Cunha

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Sonetos de olhar de Euclides da Cunha. Leia este e outros sonetos de Euclides da Cunha em Poetris.

ReminiscĂȘncia

Um dia a vi, nas lamas da miséria,
Como entre pĂąntanos um branco lĂ­rio,
Velada a fronte em palidez funérea,
O frio véu das noivas do martírio!

Pedia esmola — pequena e sĂ©ria —
Os seios, pastos de eternal delĂ­rio,
Cobertos eram de uma cor cinĂ©rea —
Seus olhos tinham o brilhar do cĂ­rio.

Tempos depois n’um carro — audaz, brilhante,
Uma mulher eu vi — febril, galante…
Lancei-lhe o olhar e… maldição! tremi…

Ria-se — cĂ­nica, servil… faceira?
O carro n’uma nuvem de poeira
Se arremessou… e eu nunca mais a vi!

Saint-Just

Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo,
– Ao forte impulso das paixĂ”es audazes
Ardente o lĂĄbio de terrĂ­veis frases
E a luz do gĂȘnio em seu olhar fulgindo,

A tirania estremeceu nas bases,
De um rei na fronte ressumou, pungindo,
Um suor de morte e um terror infindo
Gelou o seio aos cortesĂŁos sequazes –

Uma alma nova ergueu-se em cada peito,
Brotou em cada peito uma esperança,
De um sono acordou, firme, o Direito –

E a Europa – o mundo – mais que o mundo, a França –
Sentiu numa hora sob o verbo seu
As comoçÔes que em séculos não sofreu!

Um Soneto

A vez primeira que eu te vi, em meio
Das harmonias de uma valsa, elado
O lĂĄbio trĂȘmulo, esplĂȘndido, rosado,
Num riso, um riso de alvoradas cheio.

Cheio de febres, em febril anseio
O meu olhar fervente, desvairado
Como um condor de flamas emplumado
Vingou-se a espĂĄdua e devorou-te o seio.

Depois, delĂ­rio atroz, loucura imensa!
A alma, o bem, a consciĂȘncia, a crença
Lancei no incĂȘndio dos olhares teus…

Hoje estou pronto Ă  lĂ­vida jornada
Da descrença sem luz, da dor do nada…
JĂĄ disse ontem Ă  noite, adeus, a Deus!

Amor Algébrico

Acabo de estudar – da ciĂȘncia fria e vĂŁ,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das påginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz – sem aura, sem manhĂŁ,
A Álgebra criou – a mente, a alma mais sĂŁ
Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

Acabo de estudar e pĂĄlido, cansado,
Dumas dez equaçÔes os véus hei arancado,
Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz.

É tempo, Ă© tempo pois de, trĂȘmulo e amoroso,
Ir dela descansar no seio venturoso
E achar do seu olhar o luminoso X.

Cenas De EscravidĂŁo

Acabara o castigo… ĂĄspero, cavo,
Cheio de angĂșstia um grito lancinante
Estala atroz na boca hirta, arquejante;
Na boca negra, esquĂĄlida do escravo…

O seu algoz… oh! nĂŁo — Ă­ntimo travo
O seu olhar espelha — rubro, iriante…
É um escravo tambĂ©m, brĂŽnzeo, possante;
Arfa-lhe em dor o peito largo e bravo!

Cumprira as ordens do Senhor… tremente,
Fita o infeliz, calcado ao chĂŁo, dolente,
Velado o olhar num dolorido brilho…

Fita-o… depois, num Ă­mpeto sublime
Ergue-o; no peito cĂĄlido o comprime,
Cinge-o a chorar — Meu filho! pobre filho!

D. Quixote

Assim Ă  aldeia volta o da “triste figura”
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcaboiço dobrado – um grande desalento,
No entristecido olhar – uns laivos de loucura…

Sonhos, a glĂłria, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da FĂ©, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.

Mas, certo, Ăł D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pÎr nesse teu cérebro oco
O brilho da IlusĂŁo do espĂ­rito doente;

Porque hĂĄ cousa pior: Ă© o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusĂ”es – e nĂŁo se ficar louco!