Sonetos

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LXXXIII

Polir na guerra o bárbaro gentio,
Que as leis quase ignorou da natureza,
Romper de altos penhascos a rudeza,
Desentranhar o monte, abrir o rio;

Esta a virtude, a glória, o esforço, o brio
Do Russiano Herói, esta a grandeza,
Que igualou de Alexandre a fortaleza,
Que venceu as desgraças de Dario:

Mas se a lei do heroísmo se procura,
Se da virtude o espírito se atende,
Outra idéia, outra máxima o segura:

Lá vive, onde no ferro não se acende;
Vive na paz dos povos, na brandura:
Vós a ensinais, ó Rei; em vós se aprende.

Paisagens De Inverno II

Passou o outono já, já torna o frio…
– Outono de seu riso magoado.
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado…
– O sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando…

Onde ides a correr, melancolias?
– E, refratadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias…

Ah! Os Relógios

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios…

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida – a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém – ao voltar a si da vida –
acaso lhes indaga que horas são…

Sonho Vago

Um sonho alado que nasceu um instante,
Erguido ao alto em horas de demência…
Gotas de água que tombam em cadência
Na minh’alma tristíssima, distante…

Onde está ele, o Desejado? O Infante?
O que há-de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?

E neste sonho eu já nem sei quem sou…
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou…

Um fogo-fátuo rútilo, talvez…
E eu ando a procurar-te e já te vejo!
E tu já me encontraste e não me vês!…

Marília De Dirceu

Soneto 5

Ao templo do Destino fui levado:
Sobre o altar num cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anúncio do futuro estado.

Tiro um papel e lio – céu sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Este duro decreto escrito estava
Com negra tinta pela mão do fado:

“Adore Polidoro a bela Ormia,
sem dela conseguir a recompensa,
nem quebrar-lhe os grilhões a tirania.”

Dar mãos Amor mo arranca, e sem detença,
Três vezes o levando à boca impia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.

Menino e Moço

Tombou da haste a flor da minha infancia alada,
Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
Voou aos altos céus Sta Aguia, linda fada,
Que d’antes estendia as azas sobre mim.

Julguei que fosse eterna a luz d’essa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa vizão de luar que vivia encantada,
N’um castello de prata embutido a marfim!

Mas, hoje, as aguias de oiro, aguias da minha infancia,
Que me enchiam de lua o coração, outrora,
Partiram e no céu evolam-se, a distancia!

Debalde clamo e choro, erguendo aos céus meus ais:
Voltam na aza do vento os ais que a alma chora;
Ellas, porém, Senhor! ellas não voltam mais…

a fava

espero que me calhe aquela fava
que é costume meter no bolo-rei:
quer dizer que o comi, que o partilhei
no natal com quem mais o partilhava

numa ordem das coisas cuja lei
de afectos e memória em nós se grava
nalgum lugar da alma e que destrava
tanta coisa sumida que, bem sei,

pela sua presença cristaliza
saudade e alegria em sons e brilhos,
sabores, cores, luzes, estribilhos…
e até por quem nos falta então se irisa

na mais pobre semente a intensa dança
de tempo adulto e tempo de criança.

As Lágrimas

Exaltemos as lágrimas. Na pele das veias,
bom dia, águas. Gratidão ao rosto, às cores,
ao sulco nos olhos. Porquê este ardor, este
temor da erva pisada? Adormecem comigo,

meigas fábricas de quietude e solidão
no calmo azul branco da sua breve cor.
Que longe se vão no ar amargo, sob o ímpeto
delirante de as transformar em leis extintas,

ironias ou júbilos. Rolem ou finjam
incansáveis trabalhos ou dores, assim
conspiram em outras portas, outros mistérios.

Perco-as entre conversas, o sono, o amor.
Aos olhos desertos sua ausência os desgasta.
Louvemos nas lágrimas o seu fulgor vão.

Aonde, Amor Cruel, aonde me Guias?

Aonde, amor cruel, aonde me guias?
São estes os teus bosques consagrados
Onde só vejo peitos lacerados,
Corações em extremas agonias?

Só respondem as duras penedias
A míseros gemidos em vão dados;
Olhos formosos, rostos delicados
São ministros das tuas tiranias.

Já me rasgam o peito em mil pedaços:
Marcia me disparou acerbos tiros,
Lá vai fugindo com velozes passos.

Suspende, ó ninfa, os apressados giros,
Deixa cruel, ao menos, que em teus braços
Amintas lance os últimos suspiros.

Descida

O que tinha de ser já foi… E está perdida
aquela ânsia de espera, de desejo e fé,
e tudo o que virá será cópia esbatida
da Vida que foi Vida e hoje Vida não é…

Muito pouco de tudo ainda resta de pé…
Agora, nunca mais estréias… Repetida
a alma se reverá um desespero, até
que a vida já não valha a pena ser vivida…

Do que foi canto e flor restam só as raízes,
e ao tédio que envenena os dias mais risonhos
repito: nunca mais estréias… só reprises…

E que importa o que vier? Sejam anos ou meses?
– Nunca mais a beleza dos primeiros sonhos!
– Nunca mais a surpresa das primeiras vezes!

A um Crucifixo

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste… ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos…

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário…

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —

Jovens Filhos Da Pátria, Em Vossos Peitos

Jovens filhos da pátria, em vossos peitos
Depõe a pátria seu porvir de glória:
Revolve sonhos de imortal de imortal memória,
Adejando inquieta em vossos leitos.

De vós espera sublimados feitos,
P’ra ornar de palmas a futura história;
Espera em vós, como espera em Dória,
Dória tão jovem, como vós, nos pleitos.

Atletas do porvir, marchai seguros
Da liberdade à festa sacrossanta,
A levantar-lhe mais altivos muros.

Marchai: – que aos livres nem o céu suplanta,
E o índio do Brasil, sem elmos duros,
No olhar sòmente os déspotas espanta.

O Louro Chá no Bule Fumegando

O louro chá no bule fumegando
De Mandarins e Brâmanes cercado;
Brilhante açúcar em torrões cortado;
O leite na caneca branquejando.

Vermelhas brasas, alvo pão tostado;
Ruiva manteiga em prato bem lavado;
O gado feminino rebanhado,
E o pisco Ganimedes apalpando;

A ponto a mesa está de enxaropar-nos.
Só falta que tu queiras, meu Sarmento,
Com teus discretos ditos alegrar-nos.

Se vens, ou caia chuva, ou brame o vento,
Não pode a longa noite enfastiar-nos,
Antes tudo será contentamento.

O Mar

O mar é triste como um cemitério,
Cada rocha é uma eterna sepultura
Banhada pela imácula brancura
De ondas chorando num albor etéreo.

Ah! dessas no bramir funéreo
Jamais vibrou a sinfonia pura
Do amor; só descanta, dentre a escura
Treva do oceano, a voz do meu saltério!

Quando a cândida espuma dessas vagas,
Banhando a fria solidão das fragas,
Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma.

Reflete a luz do sol que já não arde,
Treme na treva a púrpura da tarde,
Chora a saudade envolta nesta espuma!

Nas grandes horas em que a insónia avulta

Nas grandes horas em que a insónia avulta
Como um novo universo doloroso,
E a mente é clara com um ser que insulta
O uso confuso com que o dia é ocioso,

Cismo, embebido em sombras de repouso
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta,
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Me farão nada, como frase estulta.

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.
Meu coração, que fala estando mudo,
Repete seu monótono torpor

Na sombra, no delírio da clareza,
E não há Deus, nem ser, nem Natureza
E a própria mágoa melhor fora dor.

Se Eu Fosse Um Padre

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
– muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
… a um belo poema – ainda que de Deus se aparte –
um belo poema sempre leva a Deus!

Amor, Co A Esperança Já Perdida

Amor, co a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída
me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar me, que não sei
tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado,
contenta te com as lágrimas que choro.

Ausência Misteriosa

Uma hora só que o teu perfil se afasta,
Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo — vago luto
Envolve logo esta morada casta.

Tua presença delicada basta
Para tudo tornar claro e impoluto…
Na tua ausência, da Saudade escuto
O pranto que me prende e que me arrasta…

Secretas e sutis melancolias
Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.

E em toda casa, nos objetos, erra
Um sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando…

Presa Do Ódio

Da tu’alma na funda galeria
Descendo às vezes, eu às vezes sinto
Que como o mais feroz lobo faminto
Teu ódio baixo de alcatéia espia.

Do Desespero a noite cava e fria,
De boêmias vis o pérfido absinto
Pôs no teu ser um negro labirinto,
Desencadeou sinistra ventania.

Desencadeou a ventania rouca,
surda, tremenda, desvairada, louca,
Que a tu’alma abalou de lado a lado.

Que te inflamou de cóleras supremas
e deixou-te nas trágicas algemas
Do teu ódio sangrento acorrentado!

Cartas

Vou correndo buscá-las – são tão leves!
mas trazem a minha alma um grande encanto,
– por que as cartas que escreves custam tanto?
– por que demora tanto o que me escreves?

Não deves torturar-me assim, não deves!
– Do teu silêncio muita vez me espanto…
Mando-te longas cartas – e entretanto
como tuas respostas são tão breves!…

Recebes cartas minhas todo dia,
e elas não dizem tudo o que eu queria
mas falam-te de amor… de coisas belas!

Tuas cartas… Mas dou-te o meu perdão,
– que me importa afinal ter razão,
se gosto tanto de esperar por elas!