Sonetos

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A Perfeição

A Perfeição é a celeste ciência
Da cristalização de almos encantos,
De abandonar os mórbidos quebrantos
E viver de uma oculta florescência.

Noss’alma fica da clarividência
Dos astros e dos anjos e dos santos,
Fica lavada na lustral dos prantos,
É dos prantos divina e pura essência.

Noss’alma fica como o ser que às lutas
As mãos conserva limpas, impolutas,
Sem as manchas do sangue mau da guerra.

A Perfeição é a alma estar sonhando
Em soluços, soluços, soluçando
As agonias que encontrou na Terra.!

VII

Versos feitos por mim na mocidade
O mérito só tem sentimento.
Eram, pra assim dizer, um instrumento
Mais que o prazer ecoando-me a saudade.

Pospondo a fantasia sempre à verdade
Melhor encontrei nesta o ornamento
E, no estudo apurando o sentimento,
Quanto tenho a saber disse-me a idade.

É isso o que vos quero eu ensinar,
Amando-vos qual pode um terno avô,
A quem para as suas cãs engrinaldar

Melhor só poderia o que eu vou
Em carícias tão vossas procurar,
Sentindo que de vós inda mais sou.

Vibra o Passado em Tudo o que Palpita

Vibra o passado em tudo o que palpita
qual dança em coração de bailarino
ao regressar já mudo o violino
e há nuvens sobre o bosque em que transita

À paz dos seres a morte em seu contínuo
crescer em ramos de coral incita
a bem da noite negra e infinita
ser um raro instrumento é seu destino:

O ceptro dos eleitos que não cansam
o corpo que este tempo já não quebra
é como a cruz que os astros quando avançam

sobre o sul traçam por medida e regra
Os deuses têm-no em suas mãos cativo
risível é quem eles mandam vivo.

Tradução de Vasco Graça Moura

Frutas E Flores

Laranjas e morangos — quanto às frutas,
Quanto às flores, porém, ah! quanto às flores,
Trago-te dálias rubras, d’essas cores
Das brilhantes auroras impolutas.

Venho de ouvir as misteriosas lutas
Do mar chorando lágrimas de amores;
Isto é, venho de estar entre os verdores
De um sítio cheio de asperezas brutas,

Mas onde as almas — pássaros que voam —
Vivem sorrindo às músicas que ecoam
Dos campos livres na rural pobreza.

Trago-te frutas, flores, só apenas,
Porque não pude, irmã das açucenas,
Trazer-te o mar e toda a natureza!

XXXIII

Aqui sobre esta pedra, áspera, e dura,
Teu nome hei de estampar, ó Francelisa,
A ver, se o bruto mármore eterniza
A tua, mais que ingrata, formosura.

Já cintilam teus olhos: a figura
Avultando já vai; quanto indecisa
Pasmou na efígie a idéia, se divisa
No engraçado relevo da escultura.

Teu rosto aqui se mostra; eu não duvido,
Acuses meu delírio, quando trato
De deixar nesta pedra o vulto erguido;

É tosca a prata, o ouro é menos grato;
Contemplo o teu rigor: oh que advertido!
Só me dá esta penha o teu retrato!

Consulta

Chamei em volta do meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…

E disse-lhes: No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? Dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito.

Mas elas perturbaram-se – coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…

E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: – Não, não valia a pena!

Está Se A Primavera Trasladando

Está se a Primavera trasladando
em vossa vista deleitosa e honesta;
nas lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta
que o monte, o campo, o rio e a floresta
se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
possa colher o fruito destas flores,
perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
que semeasse Amor em vós amores,
se vossa condição produze abrolhos.

Tudo quanto Sonhei se Foi Perdido

O que sonhei e antes de vivido
Era perfeito e lúcido e divino,
Tudo quanto sonhei se foi perdido
Nas ondas caprichosas do destino.

Que os fados em mim mesmo depuseram
Razões de ser e de não ser, contrárias,
Nas emoções que, dentro em mim, cresceram
Tumultuosas, carinhosas, várias.

Naqueles seres que fui dentro de um ser,
Que viveram de mais para eu viver
A minha vida luminosa e calma,

Se desdobraram gestos de menino
E rudes arremedos de assassino.
Foram almas de mais numa só alma.

Soneto De Quarta-Feira De Cinzas

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada.

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura.

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.

Bolero Das Águas

O passo no compasso dois por quatro
acode meu suplício de afogado
afastando de mim sedento cálice
em submerso bolero de águas tantas.

A sede dança seca na garganta
curtindo signos, fala ressequida
para a língua de couro, lixa tântala,
alisando palavras rebuçadas.

Quanto alfenim no alfanje que se enfeita
para montar as ancas de égua moura.
Lábia flamenca lambe leve as oiças,

é rito muezim ditando a dança:
no dois pra cá me levo em dois pra lá,
nas águas do regaço vou-me e lavo-me.

Humana Condição

Um sonhar-me distante, um longe incrível
É agora o meu estado: Eu sonho o Espaço
Que se fixa no mundo ao invisível
Como se o mundo andasse por meu braço,

Existo além: Sou o animal temível
De Jesus com o mundo-Deus na mão.
Sou para além do mundo concebível
Onde morre e começa a criação.

Eu, homem, sondo e meço o Infinito;
Sou corpo e espírito, esse corpo oculto,
E é só na mão de Deus que ressuscito.

E chamam a isto humana condição …
Um nada, e tudo: — Vivo e me sepulto
Dentro e fora do próprio coração.

Poema Final

Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
_ Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,

Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,

Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

Desesperança

Vai-te na aza negra da desgraça,
Pensamento de amor, sombra d’uma hora,
Que abracei com delírio, vai-te, embora,
Como nuvem que o vento impele… e passa.

Que arrojemos de nós quem mais se abraça,
Com mais ancia, á nossa alma! e quem devora
D’essa alma o sangue, com que vigora,
Como amigo comungue á mesma taça!

Que seja sonho apenas a esperança,
Enquanto a dor eternamente assiste.
E só engano nunca a desventura!

Se era silêncio sofrer fora vingança!..
Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
Talvez sem esperança haja ventura!

Viverás, que da Pena a Força Emana

Ou pra fazer-te o epitáfio vivo,
ou vives mais e a terra me apodrece.
Tua memória a morte deste arquivo
não tira, mas de mim o resto esquece.

Aqui terá o teu nome imortal gala,
indo eu, hei-de ficar do mundo oculto,
só pode dar-me a terra comum vala,
no olhar dos homens tu serás sepulto.

Meus versos monumento te serão
que hão-de ler e reler olhos a vir
e as línguas a haver repetirão

o que és, quando já ninguém respire.
Viverás, que da pena a força emana,
onde o sopro mais sopra, em boca humana.

Os Brilhantes

Não ha mulher mais pallida e mais fria,
E o seu olhar azul vago e sereno
Faz como o effeito d’um luar ameno
Na sua tez que é morbida e macia.

Como Levana … esta mulher sombria
Traz a Morte cruel ao seu aceno,
O Suicidio e a Dôr!… Lembra do Rheno
Um conto, á luz crepuscular do dia.

Por isso eu nunca invejo os seus amantes!
– E em quanto hontem, gabavam seus brilhantes,
No theatro, com vistas fascinadas…

Tortura das visões… incomprehensiveis!
Em vez d’elles, cri ver brilhar – horriveis
E verdadeiras lagrimas geladas!

Dizem Que A Arte É A Clâmide De Idéia

Dizem que a arte é a clâmide de idéia
A peregrina irradiação celeste,
E d’isso a prova singular já deste
Sorvendo d’ela a divinal sabéia!.

Da “Georgeta” na feliz estréia,
Asseverar-nos ainda mais vieste
Que és um gênio, que te vás de preste
Tornando o assombro de qualquer platéia!…

Sinto uns transportes fervorosos, ledos
Quando nas cenas de sutis enredos
Fulgem-te os olhos co’a expressão dos astros!…

E as turbas mudas, impassíveis, calmas
Sentem mil mundos lhes crescer nas almas…
Vão-te seguindo os luminosos rastros!…

A. S. Francisco Tomando O Poeta O Habito De Terceyro

Ó magno serafim, que a Deus voaste
Com asas de humildade, e paciência,
E absorto já nessa divina essência
Logras o eterno bem, a que aspiraste:

Pois o caminho aberto nos deixaste,
Para alcançar de Deus também clemência
Na ordem singular de penitência
Destes Filhos Terceiros, que criaste.

A Filhos, como Pai, olha queridos,
E intercede por nós, Francisco Santo,
Para que te sigamos, e imitemos.

E assim desse teu hábito vestidos
Na terra blasonemos de bem tanto,
E depois para o Céu juntos voemos.

Desfolhando

Essa boca, pequena, e assim vermelha,
que ao botão de uma rosa se assemelha,
– quanta vez provocava os meus desejos
desabrochando em flor entre os meus beijos…

Essa boca, pequena e mentirosa,
que diz, tanta mentira cor-de-rosa,
– era a taça de amor onde eu saciava
toda a ansiedade da minha alma escrava …

Beijando-a, compreendia que eras minha…
Meu amor transformava-te em rainha,
teu amor me fazia mais que um rei…

Agora, tu fugiste… E eu sofro, quando
vejo um outro em teus lábios desfolhando
a mesma rosa que eu desabrochei!…

Flor De Caverna

Fica às vezes em nós um verso a que a ventura
Não é dada jamais de ver a luz do dia;
Fragmento de expressão de idéia fugidia,
Do pélago interior bóia na vaga escura.

Sós o ouvimos conosco; à meia voz murmura,
Vindo-nos da consciência a flux, lá da sombria
Profundeza da mente, onde erra e se enfastia,
Cantando, a distrair os ócios da clausura.

Da alma, qual por janela aberta par e par,
Outros livre se vão, voejando cento e cento
Ao sol, à vida, à glória e aplausos. Este não.

Este aí jaz entaipado, este aí jaz a esperar
Morra, volvendo ao nada, – embrião de pensamento
Abafado em si mesmo e em sua escuridão.

A Grande Dor Das Cousas Que Passaram

A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!