Posto me tem Fortuna em tal estado
Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado,Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.
Sonetos
2370 resultadosMe Vejo com Memórias Perseguido
Se quando vos perdi, minha esperança,
A memória perdera juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.De cousas de que apenas um sinal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memórias perseguido.Ah dura estrela minha! Ah grão tormento!
Que mal pode ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que é já passado?
Titãs Negros
Hirtas de Dor, nos áridos desertos
Formidáveis fantasmas das Legendas,
Marcham além, sinistras e tremendas,
As caravanas, dentre os céus abertos…Negros e nus, negros Titãs, cobertos
Das bocas vis das chagas vis e horrendas,
Marcham, caminham por estranhas sendas,
Passos vagos, sonâmbulos, incertos…Passos incertos e os olhares tredos,
Na convulsão de trágicos segredos,
De agonias mortais, febres vorazes…Têm o aspecto fatal das feras bravas
E o rir pungente das legiões escravas,
De dantescos e torvos Satanases!…
Visão
Noiva de Satanás, Arte maldita,
Mago Fruto letal e proibido,
Sonâmbula do Além, do Indefinido
Das profundas paixões, Dor infinita.Astro sombrio, luz amarga e aflita,
Das Ilusões tantálico gemido,
Virgem da Noite, do luar dorido,
Com toda a tua Dor oh! sê bendita!Seja bendito esse clarão eterno
De sol, de sangue, de veneno e inferno,
De guerra e amor e ocasos de saudade…Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!
Mascarados
Mascarados os dois. Eu, mascarado
na hipocrisia com que levo a vida,
tu, na aparência inútil e fingida
que usas na rua com o maior cuidado …Passas por mim e segues ao meu lado
como outra qualquer desconhecida,
– quem há de imaginar nosso passado
e a intimidade entre nós dois perdida ?…Ninguém… Certo ninguém pensa e adivinha
porque eu não digo e porque tu não dizes
Que eu já fui teu… e que tu foste minha…Mas, quantas vezes, amargurado penso
em como nos sentimos infelizes
no Carnaval do nosso orgulho imenso!
Conheço o Teu Poder e a Fouce Dura
Conheço o teu poder e a fouce dura
Que a tua dextra empolga assaz respeito.
Sei que abaixo do sol tudo é sujeito
A teu poder feroz, tua bravura.De Babilónia a torre assaz segura
De teu golpe fatal sentiu o efeito.
Por ti o Ródio c’losso foi desfeito,
Sem lhe valer a desmarcada altura.Mas eu tenho um padrão que Amor defende.
Tempo cruel, que zomba do teu corte,
Bem que a mim teu furor assaz ofende.É o meu coração constante e forte,
Coração que do Tempo a mão não rende,
Coração que só vence a mão da Morte.
Cuidado!
Ó namorados que passais, sonhando,
quando bóia, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!Desperta os ninhos vosso passo… E quando
pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se é o vosso beijo que gorjeia,
se são as aves que se estão beijando…Mais cuidado! Não vá vossa alegria
afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca ouvir nem nunca ver!Poupai a ingenuidade delicada
dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!
Bendita
Bendita sejas, minha mãe, bendito
Seja o teu seio, imaculado e santo,
Onde derrama as gotas de seu pranto
Meu dolorido coração aflito.Ó minha mãe, ó anjo sacrossanto,
Bendito seja o teu amor, bendito!
Ouve do Céu o amargurado grito
Cheio da dor de quem soluça tanto.E deixa que repouse em teus joelhos
A minha fronte, ouvindo os teus conselhos
Longe do mundo, ó sempiterna dita!Envia lá do céu no teu sorriso
A morte que levou-te ao Paraíso…
Bendita sejas, minha mãe, bendita!
Quando em Meu Desvelado Pensamento
Quando em meu desvelado pensamento
O teu formoso gesto se afigura,
Não sei que afecto sinto, ou que ternura,
Que a toda esta alma dá contentamento.Ali fico num largo esquecimento,
Contemplando na minha conjectura
De teu sereno rosto a graça pura,
De teus olhos o doce movimento.Porém logo a inconstante fantasia
Me acorda o entendimento arrebatado,
E desfaz todo o bem que me fingia,Sendo tal este gosto imaginado,
Que de Amor outra glória eu não queria
Mais que trazer-te sempre em meu cuidado.
Quanto, Quanto me Queres?
Quanto, quanto me queres? – perguntaste
Olhando para mim mas distrahida;
E quando nos meus olhos te encontraste,
Eu vi nos teus a luz da minha vida.Nas tuas mãos, as minhas, apertaste.
Olhando para mim como vencida,
«…quanto, quanto…» – de novo murmuraste
E a tua boca deu-se-me rendida!Os nossos beijos longos e anciosos,
Trocavam-se frementes! – Ah! ninguem
Sabe beijar melhor que os amorosos!Quanto te quero?! – Eu posso lá dizer!…
– Um grande amôr só se avalia bem
Depois de se perder.
Ela Ia, Tranquila Pastorinha
Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha…“Em longes terras hás de ser rainha”
Um dia lhe disseram, mas em vão…
Seu vulto perde-se na escuridão…
Só sua sombra ante meus pés caminha…Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastoraSó sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir…
Recordação
Foi por aqui, sob estes árvoredos,
Sob este doce e plácido horizonte,
Perto da clara e pequenina fonte
Que murmura lá baixo os seus segredos…Recordo bem todos os cantos ledos
Da passarada — e lembro-me da ponte
Por sobre a qual via-se além, de fronte,
O mar azul batendo nos penedos.Sinto a impressão ainda da paisagem,
Do trêmolo (…)* da folhagem,
Das culturas rurais, do sítio agreste.A luz do dia vinha então morrendo…
Foi por aqui que eu pude ficar crendo
O quanto pode o teu olhar celeste.* Rasurado
Falando Ao Céu
Falas ao Céu, Amor! Em vão tu falas!
Mas o céu, esse é velho, esse é velhinho,
Todo ele é branco, faz lembrar o linho
Dos leitos alvos onde tu te embalas.A alma do céu é como velhas salas
Sem ar, sem luz, como lares sem vinho
Sem água e pão, sem fogo e sem carinho,
Sem as mais toscas, as mais simples galas.Sempre surdo, hoje o céu é mudo, é cego…
Jamais o coração ao céu entrego,
Eu que tão cego vou por entre abrolhos.Mas se queres tornar jovem e louro
Dá-lhe o bordão do teu amor um pouco
Fala e vista, com a vida dos teus olhos…
Por Decoro
Quando me esperas, palpitando amores,
E os grossos lábios úmidos me estendes,
E do teu corpo cálido desprendes
Desconhecido olor de estranhas flores;Quando, toda suspiros e fervores,
Nesta prisão de músculos te prendes,
E aos meus beijos de sátiro te rendes,
Furtando as rosas as púrpureas cores;Os olhos teus, inexpressivamente,
Entrefechados, lânguidos, tranquilos,
Olham, meu doce amor, de tal maneira,Que, se olhassem assim, publicamente,
Deveria, perdoa-me, cobri-los
Uma discreta folha de parreira.
Sonho
De suspirar em vão já fatigado,
Dando trégua a meus males eu dormia;
Eis que junto de mim sonhei que via
Da Morte o gesto lívido e mirrado:Curva fouce no punho descarnado
Sustentava a cruel, e me dizia:
“Eu venho terminar tua agonia;
Morre, não penes mais, ó desgraçado!”Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada,
Que armado de cruentos passadores
Aparece, e lhe diz com voz irada:“Emprega noutro objecto teus rigores;
Que esta vida infeliz está guardada
Para vítima só de meus furores.”
Ao Mundo Esconde O Sol Seus Resplendores
Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mão da Noite embrulha os horizontes;
não cantam aves, não murmuram fontes,
não fala Pã na boca dos pastores.Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.Vênus, Palas e as filhas da Memória,
deixando os grandes templos esquecidos,
não se lembram de altares nem de glória.Andam os elementos confundidos:
ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
sempre o mais triste foi para os vencidos!
X
Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh’alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo…Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.
O Final Do Guarani
(Santos, 15 jul. 1883)
Ceci — é a virgem loira das brancas harmonias,
A doce-flor-azul dos sonhos cor de rosa,
Peri — o índio ousado das bruscas fantasias,
O tigre dos sertões — de alma luminosa.Amam-se com o amor indômito e latente
Que nunca foi traçado nem pode ser descrito.
Com esse amor selvagem que anda no infinito.
E brinca nos juncais, — ao lado da serpente.Porém… no lance extremo, o lance pavoroso,
Assim por entre a morte e os tons de um puro gozo,
Dos leques da palmeira a note musical…Vão ambos a sorrir, às águas arrojados,
Mansos como a luz, tranqüilos, enlaçados
E perdem-se na noite serena do ideal!…
Soneto 233 Sonetado
Já li Lope de Vega e li Gregório,
pois ambos sonetaram do soneto,
seara na qual minha foice meto,
tentando fazer algo meritório.Não quero usar o mesmo palavrório,
mas pilho-me, no meio do quarteto,
montando a anatomia do esqueleto.
No oitavo verso, o alívio é provisório.Contagem regressiva: faltam cinco.
Mais quatro, e fico livre do problema.
Agora faltam três… Deus, dai-me afinco!Com dois acabo a porra do poema.
Caralho! Só mais um! Até já brinco!
Gozei! Matei a pau! Que puta tema!
Adagas Cujas Jóias Velhas Galas
Adagas cujas jóias velhas galas…
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convés sem ninguém cheio de malas…O íntimo silêncio das opalas
Conduz orientes até jóias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e salas…Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e estrugeSua ovação, e erguem as crianças
Mas o teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram…