Falando com o Mondego Estando Saudoso
Como é, Mondego, igual ao nascimento
O meu choro ao que a ti te desempenha;
Pois se o teu pranto nasce duma penha,
De um penhasco se causa o meu lamento.Tu do mal, que padeço, estás isento,
Porque abrandas chorado a tosca brenha,
Mas Fillis mais que serra me desdenha,
Quando as ruas correntes acrescento.Se pois a serra dura tanto zela
O teu chorar, que o áspero desterra,
E o meu pranto endurece a Fillis bela;Por teres mais alivio, ou menos guerra
Chora tu, pois na serra tens estrela,
Eu não, que sem estrela amo uma serra.
Sonetos
2370 resultadosPequenina
Eu bem sei que te chamam pequenina
E ténue como o véu solto na dança,
Que és no juízo apenas a criança,
Pouco mais, nos vestidos, que a menina…Que és o regato de água mansa e fina,
A folhinha do til que se balança,
O peito que em correndo logo cansa,
A fronte que ao sofrer logo se inclina…Mas, filha, lá nos montes onde andei,
Tanto me enchi de angústia e de receio
Ouvindo do infinito os fundos ecos,Que não quero imperar nem já ser rei
Senão tendo meus reinos em teu seio
E súbditos, criança, em teus bonecos!
IV – Sempre O Brasil
Nunca noite dormi tão sossegado,
Quem nem mesmo sonhei com o meu Brasil,
Porém, vendo infinito mar d’anil,
Lembra-me a aurora dele nacarada.Cada dia que passa não é nada,
E os que faltam parecem mais de mil.
Se o tempo que lá vivo é um ceitil,
Aqui é para mim grande massada.E a doença porém me consentir,
Sempre pensando nele, cuidarei
De tornar-me mais digno de o servir,E, quando possa, logo voltarei;
Pois na terra só quero eu existir
Quando é para bem dele que eu o sei.
Triste
Vai-se extinguindo a viva labareda
Que te abrasava o coração ridente…
Passas magoada pela rua e a gente
Umas converses funerais segreda.Não tens no olhar o sangue q’embebeda,
Foram-se as rosas do viver contente…
Segues, agora, pobre flor — somente
Da sepultura a essencial vereda.E vem chegando o tenebroso inverno…
Mas nesse mal devorador e eterno,
Teu organismo já não mais resisteÀs punhaladas da estação de gelo…
E acabará como eu nem sei dizê-lo,
Triste, bem triste, pesarosa, triste!
Carta
Aqui, tudo é bonito e quieto, a gente
vai vivendo uma vida sempre igual…
– Há um dia que o regato de cristal
de águas turvas ficou devido à enchente…Os dias têm passado, lentamente,
e um tédio sinto em mim, de um modo tal,
que às vezes, fico até sentimental,
lembrando-me de ti, saudosamente…Quando estavas aqui, – tudo era lindo…
Como um doce casal de beija-flores,
vivíamos os dois sempre sorrindo…Por que não voltas?… Vem!… – Se tu voltares
o céu há de cobrir-se de outras cores…
– as flores voltarão pelos pomares!..
Correm Turvas As Águas Deste Rio
Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.Passou o Verão, passou o ardente Estio,
üas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.
Coração Solitário
A noite esta fechada na janela aberta.
Uma rua perdeu-se na sombra lá embaixo.
Não existe esta rua – é um beco surrealista
que fugiu de algum quadro louco que não vi.Ouço meu coração ardente e solitário
com sua música estranha de piano bêbado.
No espelho, meu olhar: duas chamas de estrelas.
Não sei se é o vento, sei que há música na noite.Há música no quarto, nas cortinas, música
nos meus cabelos despenteados, nos meus dedos,
no meu rosto, entra e sai pela janela.Música indefinida a encher a solidão:
– estou no ventre da noite a mexer com os meus sonhos
ouço o meu coração ardente e solitário.
Disputa em Família
I
Sai das nuvens, levanta a fronte e escuta
O que dizem teus filhos rebelados,
Velho Jeová de longa barba hirsuta,
Solitário em teus Céus acastelados:« — Cessou o império enfim da força bruta!
Não sofreremos mais, emancipados,
O tirano, de mão tenaz e astuta,
Que mil anos nos trouxe arrebanhados!Enquanto tu dormias impassível,
Topámos no caminho a liberdade
Que nos sorriu com gesto indefinível…Já provámos os frutos da verdade…
Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrível.
Não passas d’uma vã banalidade! — »II
Mas o velho tirano solitário,
De coração austero e endurecido,
Que um dia, de enjoado ou distraido,
Deixou matar seu filho no Calvário,Sorriu com rir estranho, ouvindo o vário
Tumultuoso coro e alarido
Do povo insipiente, que, atrevido,
Erguia a voz em grita ao seu sacrário:« — Vanitas vanitatum! (disse). É certo
Que o homem vão medita mil mudanças,
Sem achar mais do que erro e desacerto.Muito antes de nascerem vossos pais
D’um barro vil,
Senhora minha, se de pura inveja
Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,Não me pode tolher que vos não veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.Nela vos vejo, e vejo que não nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra.Os lírios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se há tanto bem na terra!
Soneto I
Ao Duque
A glória do edifício, o louvor alto
Do que a última mão lhe põe, se dobra
Em desgraça daquele, e mágoa da obra,
Que no melhor lhe foi escasso e falto.Este de letras, com que ao Céu me exalto
E que em mim vossa mão levanta e obra,
Se sua perfeição por vós não cobra,
A todos causa mágoa e sobressalto.Já que os andames da esperança minha
Não há quem desarmá-los hoje possa,
Fazei com que este meu trabalho monte.Vós sereis minha glória, eu glória vossa,
Ficando à vista as que eu já n’alma tinha,
Vossas armas reais em minha fronte.
Soneto XXXV
Eclipsou-se teu Sol quando nascia,
Em flor cortada foi tua doce vida,
Antes de ser ganhada, foi perdida,
Deixou seus dias antes de seu dia.Aparecer então nos parecia
Quando a já vimos desaparecida,
Enfim, moça fermosa, estás rendida
À lei humana envolta em terra fria.Ai Amor, quantas vezes te condenas!
Criaste-me nesta alma ua esperança,
Deixas roubar-ma a morte sem valer-me.Mas bem entendo, Amor, que isto me ordenas
Para vir a saber a quanto alcança,
Perdê-la, sem perder-te, com perder-me.
Proposição das rimas do poeta
Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.
O Lázaro Da Pátria
Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes,Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíasis dos dedos…
Há um cansaço no Cosmos… Anoitece,Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!
Eu Como, Eu Bebo, Eu Durmo
Eu como, eu bebo, eu durmo e a vida passo
Ora bem, ora mal, como sucede:
Tomo tabaco, e chá; e se mo pede
O génio alguma vez, eu Nize abraço:As vezes jogo, as vezes versos faço,
Que mais que a arte a natureza mede:
E talvez por saber como procede
Em se mover o Sol círculos traço.Alguma vez me agrada a soledade,
Outras vezes a nobre companhia;
E desta sorte vou passando a idade:E espero assim que venha a morte fria
Com o manto da eterna escuridade
Encobrir-me de todo a luz do dia.
Escravocratas
Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados — bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar — formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos a espinha — enquanto o grande bastaO basta gigantesco, imenso, extraordinário —
Da branca consciência — o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido — audaz me não soar.Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!
Natureza Humana
Cheguei. Sinto de novo a natureza
Longe do pandemônio da cidade
Aqui tudo tem mais felicidade
Tudo é cheio de santa singelezaVagueio pela múrmura leveza
Que deslumbra de verde e claridade
Mas nada. Resta vívida a saudade
Da cidade em bulício e febre acesaAnte a perspectiva da partida
Sinto que me arranca algo da vida
Mas quero ir. E ponho-me a pensarQue a vida é esta incerteza que em mim mora
A vontade tremenda de ir-me embora
E a tremenda vontade de ficar.
Aquela Fé Tão Clara E Verdadeira
Aquela fé tão clara e verdadeira,
A vontade tão limpa e tão sem mágoa,
Tantas vezes provada em viva frágua
De fogo, i apurada, e sempre inteira;Aquela confiança, de maneira
Que encheu de fogo o peito, os olhos de água,
Por que eu ledo passei por tanta mágoa,
Culpa primeira minha e derradeira,De que me aproveitou? Não de al por certo
Que dum só nome tão leve e tão vão,
Custoso ao rosto, tão custoso à vida.Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
E já assi se consola a alma perdida,
Se não achar piedade, ache perdão.
Uma Palavra
Meu canto busca sempre uma palavra
que seja companheira na canção
da minha voz que canta e se declara:
viver a vida inteira de emoção.Uma palavra só não se prepara
puxando outra palavra sem razão
na vida que se encanta e se dispara
no claro tiro cego de paixão.Viver a arte que procura ver
os lábios desbotados da linguagem
deixando a claridade me envolverno sopro que me leva na paisagem
amaciando a pena ao escrever
teu nome, meu amor, minha viagem
O Morto Prazenteiro
Onde haja caracóis, n’um fecundo torrão,
Uma grandiosa cova eu mesmo quero abrir,
Onde repouse em paz, onde possa dormir,
Como dorme no oceano o livre tubarão.Detesto os mausoléus, odeio os monumentos,
E, a ter de suplicar as lágrimas do mundo,
Prefiro oferecer o meu carcaz imundo,
Qual precioso manjar, aos corvos agoirentos.Verme, larva brutal, tenebroso mineiro,
Vai entregar-se a vós um morto prazenteiro,
Que livremente busca a treva, a podridão!Sem piedade, minai a minha carne impura,
E dizei-me depois se existe uma tortura
Que não tenha sofrido este meu coração!Tradução de Delfim Guimarães
Ars De Eros
Enquanto vias vi fôrmas e formas
mas sabia que vinhas ver os versos
depois de veres várias folhas mortas
desse outono jardim nosso em regressos.Não adianta rosnar pantera morna
o tempo rasga sempre um vento espesso
embora não queiramos ser da horta
estrume de um adubo tão perverso,E não me venha viúva simbolista
reclamar dos poemas tão transgressos
pois te mostro a visão livre e anarquista.Se é para ver que venha então diverso
o modo de te amar mais tribalista
que morro nesse clímax dos possessos.