Tentação
Eu não resistirei à tentação,
não quero que de mim possas perder-te,
que só na fonte fria da razão
renasça a minha sede de beber-te.Eu não resistirei à tentação
de quanto adivinhei nesta amargura:
um sim que só assalta quem diz não,
um corpo que entrevi na selva escura.Resistirei a te chamar paixão,
a te perder nos versos, nas palavras:
mas não resistirei à tentação
de te dizer que o céu é o que rasaa luz que nos teus olhos eu perdi
e que na terra toda não mais vi.
Sonetos
2370 resultadosA Inocência
Caminhando no mundo vai segura
A Inocência, com grave firme passo.
Sem temor de cair no infame laço
Que arma a traidora mão, a mão perjura.Como não obra mal, nem mal procura
Para os seus semelhantes, corre o espaço
Sem lança, sem arnês, sem peito de aço,
Armada só de consciência pura.Pois que ofensa não faz, não teme ofensa
E por isso passeia, satisfeita,
Sem as feras temer na selva densa.Traições, ódios, vinganças não espreita.
Certa no bem que faz, só nele pensa:
Quem remorsos não tem, mal não suspeita.
VII
Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
Conta e Tempo
Deus pede estrita conta de meu tempo.
E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo?Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado, e não fiz conta,
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo.Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta!Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo,
Quando o tempo chegar, de prestar conta
Chorarão, como eu, o não ter tempo…
Dantão
Parece-me que o vejo iluminado.
Erguendo delirante a grande fronte
– De um povo inteiro o fúlgido horizonte
Cheio de luz, de idéias constelado!De seu crânio vulcão – a rubra lava
Foi que gerou essa sublime aurora
– Noventa e três – e a levantou sonora
Na fronte audaz da populaça brava!Olhando para a história – um século e a lente
Que mostra-me o seu crânio resplandente
Do passado através o véu profundo…Há muito que tombou, mas inquebrável
De sua voz o eco formidável
Estruge ainda na razão do mundo!
O Anjo De Pernas Tortas
A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés – um pé-de-vento!Num só transporte a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.Garrincha, o anjo, escuta e atende: – Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um o
Dentro da meta, um 1. É pura dança!
Mães de Portugal
Ó Mães de Portugal comovedoras,
Com Meninos Jesus de encontro ao peito,
Iguais na devoção e amor perfeito
Aos painéis onde estão Nossas Senhoras!Ó Virgem Mãe, qual se tu própria foras,
Surgem de cada lado, quase a eito,
As Mães e os Filhos em abraço estreito,
Dolorosas, felizes, povoadoras…São presépios as casas onde moram:
E o riso casto, as lágrimas que choram,
O anseio que lhes enche o coração,Gesto, candura, olhar — tudo é divino,
Tudo ensinado pelo Deus Menino,
Tudo é da Mãe Celeste inspiração!
Eu Vivia De Lágrimas Isento
Eu vivia de lágrimas isento,
num engano tão doce e deleitoso
que em que outro amante fosse mais ditoso,
não valiam mil glórias um tormento.Vendo-me possuir tal pensamento,
de nenhüa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso,
com doce amor e doce sentimento.Cobiçosa, a Fortuna me tirou
deste meu tão contente e alegre estado,
e passou-me este bem, que nunca fora:em troco do qual bem só me deixou
lembranças, que me matam cada hora,
trazendo-me à memória o bem passado.
O Apaixonado
Luas, marfins, instrumentos e rosas,
Traços de Dúrer, lampiões austeros,
Nove algarismos e o cambiante zero,
Devo fingir que existem essas coisas.Fingir que no passado aconteceram
Persépolis e Roma e que uma areia
Subtil mediu a sorte dessa ameia
Que os séculos de ferro desfizeram.Devo fingir as armas e a pira
Da epopeia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.Devo fingir que há outros. É mentira.
Só tu existes. Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
O Milagre De Guaxenduba
Minha Terra natal, em Guaxenduba;
Na trincheira, em que o luso ainda trabalha,
A artilharia, que ao francês derruba,
Por três bocas letais pragueja e ralha.O leão de França, arregaçando a juba,
Saltou. E o luso, como um tigre, o atalha.
Troveja a boca do arcabuz, e a tuba
Do índio corta o clamor e o medo espalha.Foi então que se viu, sagrando a guerra,
Nossa Senhora, com o Menino ao colo,
Surgir lutando pela minha terra.Foi-lhe vista na mão a espada em brilho…
(Pátria, se a Virgem quis assim teu solo,
Que por ti não fará quem for teu filho?)
Lírio Lutuoso
Essência das essências delicadas,
Meu perfumoso e tenebroso lírio,
Oh! dá-me a glória de celeste Empíreo
Da tu’alma nas sombras encantadas.Subindo lento escadas por escadas,
Nas espirais nervosas do Martírio,
Das Ânsias, da Vertigem, do Delírio,
Vou em busca de mágicas estradas.Acompanha-me sempre o teu perfume,
Lírio da Dor que o Mal e o Bem resumem,
Estrela negra, tenebroso fruto.Oh! dá-me a glória do teu ser nevoento
para que eu possa haurir o sentimento
Das lágrimas acerbas do teu luto!.
Clamor Supremo
Vem comigo por estas cordilheiras!
Põe teu manto e bordão e vem comigo,
Atravessa as montanhas sobranceiras
E nada temas do mortal Perigo!Sigamos para as guerras condoreiras!
Vem, resoluto, que eu irei contigo
Dentre as Águias e as chamas feiticeiras,
Só tendo a Natureza por abrigo.Rasga florestas, bebe o sangue todo
Da Terra e transfigura em astros lodo,
O próprio lodo torna mais fecundo.Basta trazer um coração perfeito,
Alma de eleito, Sentimento eleito
Para abalar de lado a lado o mundo!
Visão Guiadora
Ó alma silenciosa e compassiva
Que conversas com os Anjos da Tristeza,
Ó delicada e lânguida beleza
Nas cadeias das lágrimas cativa.Frágil, nervosa timidez lasciva,
Graça magoada, doce sutileza
De sombra e luz e da delicadeza
Dolorosa de música aflitiva.Alma de acerbo, amargurado exílio,
Perdida pelos céus num vago idílio
Com as almas e visões dos desolados.Ó tu que és boa e porque és boa és bela,
Da Fé e da Esperança eterna estrela
Todo o caminho dos desamparados.
A Vida
“A Vida”
IV
“…A vida é assim, uma ânsia… feito a vaga
que se ergue e rola a espumejar na areia,
– apor esse bem que a tua mão semeia
espera o mal que ainda terás por paga!A essa hora boa que te agrada e enleia
sucede uma outra torturante e aziaga,
– a vida é assim… um canto de sereia
que à morte nos convida, e nos afaga…O teu sonho melhor bem pouco dura,
e há sempre”um amanhã”cheio de dor
para”um hoje”nem sempre de ventura…Toma entre as mãos o búzio da alegria
e surpreso verás que no interior
canta profunda e imensa nostalgia!…”
Manhã
Alta alvorada. — Os últimos nevoeiros
A luz que nasce levemente espalha;
Move-se o bosque, a selva que farfalha
Cheia da vida dos clarões primeiros.Da passarada os vôos condoreiros,
Os cantos e o ar que as árvores ramalha
Lembram combate, estrídula batalha
De elementos contrários e altaneiros.Vozes, trinados, vibrações, rumores
Crescem, vão se fundindo aos esplendores
Da luz que jorra de invisível taça.E como um rei num galeão do Oriente
O sol põe-se a tocar bizarramente
Fanfarras marciais, trompas de caça.
A Morte, esse Lugar-Comum
É trivial a morte e há muito se sabe
fazer – e muito a tempo! – o trivial.
Se não fui eu quem veio no jornal,
foi uma tosse a menos na cidade…A caminho do verme, uma beldade
— não dirias assim, Gomes Leal? —
vai ser coberta pela mesma cal
que tapa a mais intensa fealdade.Um crocitar de corvo fica bem
neste anúncio de morte para alguém
que não vê n’alheia sorte a própria sorte…Mas por que não dizer, com maior nojo,
que um menino saiu do imenso bojo
de sua mãe, para esperar a morte?…
Neurastenia
Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Marias!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza…O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza…Chuva…tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento…tenho saudades! Mas de quê?!
Ó neve que destino triste o nosso!Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso !!…
As Mãos
Brandamente escrevem dos espasmos do sol.
Envelhecem do pulso ao cérebro, ao calor baço
de um revérbero no eixo dos ventos, usura
das máscaras que, sucessivamente, as transformamde consciência em cal ou metal obscuro.
E já não é por si que a presença existe ou
subsiste o que separa. Destroem as sementes,
apodrecem como um sopro e não são remansona areia ou domadoras de chamas. Igualam-se
à água, para serem raiz do que se cala
e insinuam-se, para sempre, no pó da noite.Um castelo de pele tomba. Deixam de ser
nomeadas ou nome. Escrevem, brandamente,
do termo da música o luto do silêncio.
Soneto 278 A Salvador Dali
Pra mim, Picasso perto dele é pinto.
Qual cubo nem Guernica! O catalão
pôs fogo na girafa, e dá lição
de como você pinta como eu pinto.Relógios derreteu, deu ao recinto
bagunça formidável de ilusão.
Bigodes retorceu, e a posição
do Cristo subverteu: estilo extinto.Talvez fez na pintura o que Gaudí
ergueu, fenomenal, na arquitetura:
delírio, porém nítido. Não vino século atual maior textura
que o fruto da estranheza de Dali,
o gênio do ocular na cor. Loucura!
Olhos
II
A Grécia d’Arte, a estranha claridade
D’aquela Grécia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
Odisséias e deuses e galeras…Na sonolência de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!…