Sonetos

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XIV

Viver não pude sem que o fel provasse
Desse outro amor que nos perverte e engana:
Porque homem sou, e homem não há que passe
Virgem de todo pela vida humana.

Por que tanta serpente atra e profana
Dentro d’alma deixei que se aninhasse?
Por que, abrasado de uma sede insana,
A impuros lábios entreguei a face?

Depois dos lábios sôfregos e ardentes,
Senti duro castigo aos meus desejos
O gume fino de perversos dentes…

E não posso das faces poluídas
Apagar os vestígios desses beijos
E os sangrentos sinais dessas feridas!

Cabelos

I

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos…

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia…

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida Noite da melancolia!

Mors – Amor

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: “Eu sou a morte!”
Responde o cavaleiro: “Eu sou o Amor!”

Enquanto Febo Os Montes Acendia

Enquanto Febo os montes acendia
do Céu com luminosa claridade,
por evitar do ócio a castidade
na caça o tempo Délia despendia.

Vénus, que então de furto descendia,
por cativar de Anquises a vontade,
vendo Diana em tanta honestidade,
quase zombando dela, lhe dizia:

– Tu vás com tuas redes na espessura
os fugitivos cervos enredando,
mas as minhas enredam o sentido.

-Melhor é (respondia a deusa pura)
nas redes leves cervos ir tomando
que tomar-te a ti nelas teu marido.

Mais Triste

É triste, diz a gente, a vastidão
Do mar imenso! E aquela voz fatal
Com que ele fala, agita o nosso mal!
E a Noite é triste como a Extrema-Unção!

É triste e dilacera o coração
Um poente do nosso Portugal!
E não vêem que eu sou…eu…afinal,
A coisa mais magoada das que o são?!…

Poentes de agonia trago-os eu
Dentro de mim e tudo quanto é meu
É um triste poente de amargura!

E a vastidão do Mar, toda essa água
Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa!
E a noite sou eu própria! A Noite escura!!

O Meu Soneto

Em atitudes e em ritmos fleumáticos,
Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
Todos brocados fúlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos…

E os meus olhos serenos, enigmáticos
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
São letras de poemas nunca lidos…

As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d´amor trazem de rastros…

E a minha boca, a rútila manhã,
Na Via Láctea, lírica, pagã,
A rir desfolha as pétalas dos astros!..

Soneto VIII

Da virtude que move os Céus depende
Todo o bem, toda a glória e ser da terra,
E se u’hora faltasse, o vale, a serra,
A flor, o fruito, a fonte, o rio ofende.

Esse braço que amor de longe estende
Para esta alma, meu ser e vida encerra,
E se algu’hora Amor dela o desterra,
Que glória mais que vida ou ser pretende.

Mas nem há-de faltar essa virtude
Se não c’o mundo, nem faltar-me agora;
Vosso Amor até morte me assigura.

Então para que nunca mais se mude,
Se mudará, e mudar-se Amor nessa hora,
Será para outro Amor que sempre dura.

VI

P. Sião que dorme ao luar. Vozes diletas
Modulam salmos de visões contritas…
E a sombra sacrossanta dos Profetas
Melancoliza o canto dos levitas.

As torres brancas, terminando em setas,
Onde velam, nas noites infinitas,
Mil guerreiros sombrios como ascetas,
Erguem ao Céu as cúpulas benditas.

As virgens de Israel as negras comas
Aromatizam com os ungüentos brancos
dos nigromantes de mortais aromas…

Jerusalém, em meio às Doze Portas,
Dorme: e o luar que lhe vem beijar os flancos
Evoca ruínas de cidades mortas.

Poética

Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo.
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
…. Entrai, irmãos meus!

Um Soneto Começo Em Vosso Gabo;

Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.

Ruínas

Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… Deixa-os tombar.

Douto, Prudente, Nobre, Humano, Afável

Ao desembargador Belchior da Cunha Brochado, casado com uma filha de Sebastião Barbosa, Capitão de infantaria do III da Praça da Bahia.

Douto, prudente, nobre, humano, afável.
Reto, ciente, benigno e aprazível.
Único, singular, raro, inflexível.
Magnífico, preclaro, incomparável.

Do mundo grave juiz. Inimitável.
Admirado, gozais aplauso incrível,
Pois a trabalho tanto e tão terrível,
Dais pronto execução sempre incansável.

Vossa fama, senhor, seja notória
Lá no clima onde nunca chega o dia.
Onde do Erebo só se tem memória

Para que garbo tal, tanta energia!
Pois de toda esta terra é gentil glória,
Da mais remota seja uma alegria.

Celeste

A uma criança

Eu fiz do Céu azul minha esperança
E dos astros dourados meu tesouro…
Imagina por que, doce criança,
Nas noites de luar meus sonhos douro!

Adivinha, se podes, quanto é mansa
A luz que bola sob um cílio de ouro.
E como é lindo um laço azul na trança
Embalsamada de um cabelo louro!

Imagina por que peço, na morte,
– Um esquife todo azul que me transporte,
Longe da terra, longe dos escolhos…

Imagina por que… mas, lírio santo!
Não digas a ninguém que eu amo tanto
A cor de teu cabelo e dos teus olhos!

Voz Que Se Cala

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!…

Retorno

Meu ser em mim palpita como fora
do chumbo da atmosfera constritora.
Meu ser palpita em mim tal qual se fora
a mesma hora de abril, tornada agora.

Que face antiga já se não descora
lendo a efígie do corvo na da aurora?
Que aura mansa e feliz dança e redoura
meu existir, de morte imorredoura?

Sou eu nos meus vinte aons de lavoura
de sucos agressivos, qe elabora
uma alquimia severa, a cada hora.

Sou eu ardendo em mim, sou eu embora
não me conheça mais na minha flora
que, fauna, me devora quanto é pura.

Soneto XXVI

Fortuna ingrata, porque me persegues?
Apareces-me branda e logo foges,
Dás-me um bem, porque dele me despojes,
Mostras-te liberal, só porque negues.

Para que só me deixes, só me segues,
Fazes-me mimos, só porque me enojes,
Se me levantas, é porque me arrojes,
Se me asseguras, é porque me entregues.

Vinga-te bem, Fortuna, que vingado
Estou assaz de ti, com te vingares,
Que todos dizem ser mal empregado.

Um bem me fazes sem o imaginares:
C’o Mundo, eu contra mim tenho apostado,
E assim ganho sempre c’os azares.

A Janela E O Sol

“Deixa-me entrar, – dizia o sol – suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende…
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”

E, fechando mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: “Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abri-me!

E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!”

Finalmente outra Vez Vejo Perdida

Finalmente outra vez vejo perdida
Às mãos do amor, a doce liberdade
Que já livrei da sua crueldade
Como quem de um naufrágio salva a vida.

Já no meu coração nova ferida
Abrem os duros golpes da saudade;
E já vive outra vez minha vontade
De esperanças aéreas revestida.

Nunca cuidei que visse, amor tirano,
Tão depressa quebrado o juramento
Que fiz no puro altar do desengano.

Mas quem pode viver de amor isento,
Vendo naquele rosto soberano
De tais olhos o doce movimento?

A Morte – O Sol Do Terrível

(com tema de Renato Carneiro Campos)

Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.

Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.

Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.

Já Sobre o Coche de Ébano Estrelado

Já sobre o coche de ébano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas acostumado.

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio com que está mih’alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.