XXVIII
Pinta-me a curva destes céus … Agora,
Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma:
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
A correnteza túrbida e sonora
Do Paraíba, em torvelins de espuma.Pinta; mas vê de que maneira pintas …
Antes busques as cores da tristeza,
Poupando o escrínio das alegres tintas:– Tristeza sir-gular, estranha mágoa
De que vejo coberta a natureza,
Porque a vejo com os olhos rasos d’água …
Sonetos
2370 resultadosXXII
A Goethe.
Quando te leio, as cenas animadas
Por teu gênio, as paisagens que imaginas,
Cheias de vida, avultam repentinas,
Claramente aos meus olhos desdobradas.Vejo o céu, vejo as serras coroadas
De gelo, e o sol que o manto das neblinas
Rompe, aquecendo as frígidas campinas
E iluminando os vales e as estradas.Ouço o rumor soturno da charrúa,
E os rouxinóis que, no carvalho erguido,
A voz modulam de ternuras cheia.E vejo, à luz tristíssima da lua,
Hermann que cisma, pálido, embebido
No meigo olhar da loura Dorothéa…
Os Teus Beijos, Meu Bem, Tuas Carícias
Os teus beijos, meu bem, tuas carícias,
Teus afagos, teus íntimos abraços,
São apertados nós que dás nos laços
Que prendem nossas ditas vitalícias.Deixa gabar os deuses co’as delícias
Que desfrutam nos seus etéreos Paços,
Que estas, que nós gozamos por espaços
São, Marília, reais, não são fictícias.Ora na tua ideia um pouco finge,
S’um prazer imortal que não se altera
As faces divinais com rosas tinge:Se o chão que em teus olhos reverbera,
Se a ternura sem par que a mim te cinge
Durasse um dia, o sol sua luz perdera.
Afra
Ressurges dos mistérios da luxúria,
Afra, tentada pelos verdes pomos,
Entre os silfos magnéticos e os gnomos
Maravilhosos da paixão purpúrea.Carne explosiva em pólvoras e fúria
De desejos pagãos, por entre assomos
Da virgindade–casquinantes momos
Rindo da carne já votada a incúria.Votada cedo ao lânguido abandono,
Aos mórbidos delíquios como ao sono,
Do gozo haurindo os venenosos sucos.Sonho-te a deusa das lascivas pompas,
A proclamar, impávida, por trompas,
Amores mais estéreis que os eunucos!
O Futuro Perfeito
À minha neta Anica
A neta explora-me os dentes,
Penteia-me como quem carda.
Terra da sua experiência,
Meu rosto diverte-a, parda
Imagem dada à inocência.Finjo que lhe como os dedos,
Fura-me os olhos cansados,
Intima aos meus próprios medos
Deixa-mos sossegados.E tira, tira puxando
Coisas de mim, divertida.
Assim me vai transformando
Em tempo da sua vida.
Anfitrite
Louco, às doudas, roncando, em látegos, ufano,
O vento o seu furor colérico passeia…
Enruga e torce o manto à prateada areia
Da praia, zune no ar, encarapela o oceano.A seus uivos, o mar chora o seu pranto insano,
Grita, ulula, revolto, e o largo dorso arqueia;
Perdida ao longe, como um pássaro que anseia,
Alva e esguia, uma nau avança a todo o pano.Sossega o vento; cala o oceano a sua mágoa;
Surge, esplêndida, e vem, envolta em áurea bruma,
Anfitrite, e, a sorrir, nadando à tona d’água,Lá vai… mostrando à luz suas formas redondas,
Sua clara nudez salpicada de espuma,
Deslizando no glauco amículo das ondas.
Dedicatória
A quem não basta a vida, a quem procura
as luzes escondidas de outra noite
deixo dedicatória e pronta fuga
da treva que nos ronda até à morte.Mas já não sei mentir. Ruim figura.
Durou o nosso enredo uma só noite.
Teu corpo eu aprendi nessas escuras
sombras a que não chega nem a morte.A quem não basta a vida, a quem engana
essa réstea de luz dentro da noite
deixo dedicatória e abro os olhos:
que tudo nos é dado de repente.E num feixe de sombras imprecisas
arde o que resta a quem não basta a vida.
Rala Cai Chuva. O Ar Não É Escuro. A Hora
Rala cai chuva. O ar não é escuro. A hora
Inclina-se na haste; e depois volta.
Que bem a fantasia se me solta!
Com que vestígios me descobre agora!Tédio dos interstícios, onde mora
A fazer de lagarto. – O muro escolta
A minha eterna angústia de revolta
E esse muro sou eu e o que em mim chora.Não digas mais, pois te ignorei cativo…
Teus olhos lembram o que querem ser,
Murmúrio de águas sobre a praia, e o esquivoLangor do poente que me faz esquecer.
Que real que és! Mas eu, que vejo e vivo,
Perco-te, e o som do mar faz-te perder.
Que Levas, Cruel Morte?- Um Claro Dia.
Que levas, cruel Morte?- Um claro dia.
– A que horas o tomaste?- Amanhecendo.
– Entendes o que levas?- Não o entendo.
– Pois quem to faz levar?- Quem o entendia.Seu corpo quem o goza?- A terra fria.
– Como ficou sua luz?- Anoitecendo.
– Lusitânia que diz?- Fica dizendo:
Enfim, não mereci Dona Maria.Mataste quem a viu?- Já morto estava.
– Que diz o cru Amor?- Falar não ousa.
– E quem o faz calar?- Minha vontade.Na corte que ficou?- Saudade brava.
– Que fica lá que ver?- Nenhüa cousa;
mas fica que chorar sua beldade.
Minuciosa formiga
Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.Assim devera eu ser
se não fora não querer.
Toledo
Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!
O sol a rir… Vivalma… Não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer…As tuas mãos tacteiam-me a tremer…
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!Cerro um pouco o olhar onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo,
– Um grande amor é sempre grave e triste.Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo…
Uma torre ergue ao céu um grito agudo…
Tua boca desfolha-me num beijo…
Ser
Cansada expectativa tão ansiosa
que ser só eu na minha vida espalha!
Na longa noite em que se tece a malha
do que não serei nunca, fervorosaminha presença rútila e curiosa
arde sombria como um arder de palha,
curiosa apenas de saber se goza
o voar das cinzas quando o vento calhalá onde o levantá-las é verdade.
Inutilmente se mistura tudo,
que a mesma ansiedade, já esquecida,de novo recomeça. Mas quem há-de
contrariá-la? Eu não, que não me iludo:
Viver é isto, quando se é só vida.
A Vida que Vivemos
A vida que vivemos encerrou-se
na concha de coral duma lembrança.
Por muros altaneiros confmou-se,
volteia dentro deles em suave dança.Liberta de sonhar, por tal fronteira,
condenada a um eterno redopio,
pusilânime e triste timoneira
balançando ao sabor do teu navio,ó estranha expressão de movimento,
tão escrava de ti que não tens fim,
ó reduto fechado dum tormentocujas mãos me maltratam só a mim,
deixa as aves lançarem no teu meio
essa sombra das asas por que anseio!
De quem o mesmo Amor não se Apartava
Já a roxa e clara Aurora destoucava
Os seus cabelos de ouro delicados,
E das flores os campos esmaltados
Com cristalino orvalho borrifava;Quando o formoso gado se espalhava
De Sílvio e de Laurente pelos prados;
Pastores ambos, e ambos apartados
De quem o mesmo Amor não se apartava.Com verdadeiras lágrimas, Laurente,
− Não sei − dizia − ó Ninfa delicada,
Porque não morre já quem vive ausente,Pois a vida sem ti não presta nada.
Responde Sílvio: − Amor não o consente,
Que ofende as esperanças da tornada.
Soneto Dos Vinte Anos
Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.
XLI
Injusto Amor, se de teu jugo isento
Eu vira respirar a liberdade,
Se eu pudesse da tua divindade
Cantar um dia alegre o vencimento;Não lograras, Amor, que o meu tormento,
Vítima ardesse a tanta crueldade;
Nem se cobrira o campo da vaidade
Desses troféus, que paga o rendimento:Mas se fugir não pude ao golpe ativo,
Buscando por meu gosto tanto estrago,
Por que te encontro, Amor, tão vingativo?Se um tal despojo a teus altares trago,
Siga a quem te despreza, o raio esquivo;
Alente a quem te busca, o doce afago.
Um Ser
Um ser na placidez da Luz habita,
Entre os mistérios inefáveis mora.
Sente florir nas lágrimas que chora
A alma serena, celestial, bendita.Um ser pertence à música infinita
Das Esferas, pertence à luz sonora
Das estrelas do Azul e hora por hora
Na Natureza virginal palpita.Um ser desdenha das fatais poeiras,
Dos miseráveis ouropéis mundanos
E de todas as frívolas cegueiras…Ele passa, atravessa entre os humanos,
Como a vida das vidas forasteiras
Fecundada nos próprios desenganos.
Ela, em meu Sonho
Ela vivia num palácio mouro…
Nas harpas, os seus dedos a espreitarem
como pajens curiosos, a afastarem
os cortinados todos fios de ouro.As suas mãos, tão leves como as aves,
ora fugiam volitando, frias,
ora pesam, trêmulas, suaves,
nas cordas, a sonharem melodias…E os sons que ela tangia, aos seus ouvidos
chegaram, receosos de senti-la,
voltavam a não ser nunca tangidos.É que ela, as suas mãos, as harpas de ouro,
não eram mais do que um supor ouvi-la
e o meu julgá-la num palácio mouro.
Desespero
Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deuA grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o espermen que te dou, o desespero.
Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!Como já pera sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!
Que pena sentirei que valha tanto,
Que inda tenha por pouco viver triste?