Sonetos

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Amor

Por teu ventre começa a minha vida,
Por teus olhos a estrela que me guia.
Amor, que Deus te salve! — Ave-Maria
Cheia de Graça ó Bem-Aparecida.

Por meu e por teu verbo de harmonia
Se fará eterna origem comovida
De outros frutos de Amor! — Ave-Maria,
Senhora da minh’alma apetecida.

E meu sangue amoroso e produtivo
Se fará carne e espírito fecundo
À tua imagem noutro corpo vivo.

E assim ambos, Amor, iremos ser
Seio da vida originando o mundo
Por teu ventre bendito de Mulher.

De Alma Em Alma

Tu andas de alma em alma errando, errando,
como de santuário em santuário.
És o secreto e místico templário
As almas, em silêncio, contemplando.

Não sei que de harpas há em ti vibrando,
que sons de peregrino estradivário
Que lembras reverências de sacrário
E de vozes celestes murmurando.

Mas sei que de alma em alma andas perdido
Atrás de um belo mundo indefinido
De silêncio, de Amor, de Maravilha.

Vai! Sonhador das nobres reverências!
A alma da Fé tem dessas florescências,
Mesmo da Morte ressuscita e brilha!

No Campo

Acordo de manhã cedo
Da luz aos doces carinhos:
Que rosas pelos caminhos!
Que rumor pelo árvoredo!

Para o azul radioso e ledo
Sobe, de dentro dos ninhos,
O canto dos passarinhos
Cheio de amor e segredo.

Dentre moitas de verdura
Voam as pombas nevadas,
Imaculadas de alvura.

Pelas margens das estradas
Que penetrante frescura
Que femininas risadas!

No Circo

(A João de Deus)

Muito longe d’aqui, nem eu sei quando,
Nem onde era esse mundo, em que eu vivia…
Mas tão longe… que até dizer podia
Que enquanto lá andei, andei sonhando…

Porque era tudo ali aéreo e brando,
E lúcida a existência amanhecia…
E eu… leve como a luz… até que um dia
Um vento me tomou, e vim rolando…

Caí e achei-me, de repente, involto
Em luta bestial, na arena fera,
Onde um bruto furor bramia solto.

Senti um monstro em mim nascer n’essa hora,
E achei-me de improviso feito fera…
— É assim que rujo entre leões agora!

Aos Mortos

Oh! não é bom rir-se de um morto — brusca
Pois deve ser a sensação que aumenta
Desoladora, vagarosa, lenta
Da negra morte tétrica velhusca…

Tudo que em vida, como um sol, corusca,
Que nos aquece, que nos acalenta,
Tudo que a dor e a lágrima afugenta,
O olhar da morte nos apaga e ofusca…

Nunca se deve desprezar os mortos…
Nos regelados e sombrios portos,
Onde a matéria se transforma e urge

Exuberar na planturosa leiva,
Vivem os mortos no vigor da seiva,
Porque dão vida ao que da vida surge!…

Relâmpago

Rompe-se a escuridão quando ao olhar
para uma face o mundo se ilumina
com uma claridade repentina
capaz de, só por si, fazer brilhar

a substância tão irregular
de tudo o que se acende na retina
e através da luz se dissemina
por entre imagens vãs, até formar

um fluido movimento, uma paisagem
a que estes olhos quase não reagem
salvo se nesse instante o rosto for

transfigurado pela fantasia.
E às vezes é só isso que anuncia
aquilo a que chamamos o amor.

A Fome E O Amor

A um monstro

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbangem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!

Amor! E a satiríasis sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!

Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois

Representam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!

Soneto Na Morte De José Arthur Da Frota Moreira

Cantamos ao nascer o mesmo canto
De alegria, de súplica e de horror
E a mulher nos surgiu no mesmo encanto
Na mesma dúvida e na mesma dor.

Criamos toda a sedução, e tanto
Que de nós seduzido, o sedutor
Morreu nas mesmas lágrimas de amor
Ao milagre maior do amor em pranto.

Fui um pouco teu cão e teu mendigo
E tu, como eu, mendigo de outro pão
Sempre guardaste o pão do teu amigo

Meu misterioso irmão, sigo contigo
Há tanto, tanto tempo, mão na mão…
Ouve como chora o coração.

Aspiração

Deve ser bom morrer numa noite como essa!
Beber a luz do luar e sentir-lhe a embriaguez.
Quando se sofre assim, a morte é uma promessa…
Vou tentar ser feliz pela última vez.

Foi diferente a minha vida. Andou depressa.
O que fiz, o destino inclemente desfez.
Quando o amor se dilui e a saudade começa,
Talvez a morte seja um consolo… talvez.

Serei no céu pastor de estrelas… Entre os dedos
Prenderei um punhado delas, uma a uma,
E ao som da avena que um pastor-poeta me deu,

A lua se desmanchará sobre os rochedos,
Para que eu veja nela, em seu vulto de espuma,
A mulher que foi sombra e … desapareceu.

Soneto XVI

Já tramontado o Sol do assento puro,
Debuxadas se vêem no claro rio
As seis filhas de Atlante pelo estio,
Cobre-se Electra, só, de um manto escuro.

Já que com tanto risco me aventuro,
E sou tachado por escuro e frio,
Mostrem-se todos, que eu num só desvio
De vergonha escondido estar procuro.

Mas bem sabeis, engenho ilustre e nobre,
Que inda que o lavrador bárbaro veja
Que não são mais que seis estas estrelas,

O Astrólogo sábio, que descobre
Mais avante e co’a vista além peleja,
Diz que são sete, esconde-se ua delas.

Soneto de Contrição

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma…

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.

Vendo A Anarda Depõe O Sentimento

A serpe, que adornando várias cores,
com passos mais oblíquos, que serenos,
entre belos jardins, prados amenos,
é maio errante de torcidas flores;

se quer matar da sede os desfavores,
Os cristais bebe com a peçonha menos,
por que não morra com os mortais venenos,
se acaso gosta dos vitais licores.

Assim também meu coração queixoso,
na sede ardente do feliz cuidado
bebe cos olhos teu cristal formoso;

Pois para não morrer no gosto amado,
depõe logo o tormento venenoso,
se acaso gosta o cristalino agrado.

Vinham Rosas na Bruma Florescidas

Vinham rosas na bruma florescidas
rodear no teu nome a sua ausência.
E a si se coroavam, e tingiam
a apenas sombra de sua transparência.

Coroavam-se a si. Ou no teu nome
a mágoa que vestiam madrugava
até que a bruma dissipasse o bosque
e ambos surgissem só lugar de mágoa.

Mágoa não de antes ou de depois. Presente
sempre actual de cada bruma ou rosa,
relativos ou não no espelho ausente.

E ausente só porque, se não repousa,
é nome rodopio que, na mente,
em bruma a brisa em que se aviva a rosa.

Não Estejas Longe de Mim um Dia que Seja

Não estejas longe de mim um dia que seja, porque,
porque, não sei dizê-lo, é longo o dia,
e estarei à tua espera como nas estações
quando em algum sitio os comboios adormeceram.

Não te afastes uma hora porque então
nessa hora se juntam as gotas da insónia
e talvez o fumo que anda à procura de casa
venha matar ainda meu coração perdido.

Ai que não se quebre a tua silhueta na areia,
ai que na ausência as tuas pálpebras não voem:
não te vás por um minuto, ó bem-amada,

porque nesse minuto terás ido tão longe
que atravessarei a terra inteira perguntando
se voltarás ou me deixarás morrer.

Lágrima

Orvalho do sofrer – dentro do peito nasce
e nos olhos em pranto sem querer floresce;
aumenta a pouco e pouco, e cada vez mais cresce…
– e rola finalmente em gotas pela face…

sublime florescer da dor… se ela falasse
diria para o mundo a mais sentida prece,
no entanto, em seu silencio humilde é que enternece
pois guarda na mudez um triste desenlace…

Repentina, ela brota, assim como se fosse
( de um mar que em nosso peito as ondas estugisse)
uma gota que o vento, aos nossos olhos, trouxe…

Nuns olhos de mulher, porém, ainda não disse:
– é a pérola de um mar completamente doce,
de um mar feito de amor… de sonho e de meiguice!

Foederis Arca

Visão que a luz dos Astros louros trazes,
Papoula real tecida de neblinas
Leves, etéreas, vaporosas, finas,
Com aromas de lírios e lilazes.

Brancura virgem do cristal das frases,
Neve serene das regiões alpinas,
Willis juncal de mãos alabastrinas,
De fugitivas correções vivazes.

Floresces no meu Verso como o trigo,
O trigo de ouro dentre o sol floresce
E és a suprema Religião que eu sigo…

O Missal dos Missais, que resplandece,
A igreja soberana que eu bendigo
E onde murmuro a solitária prece!…

Aparição

Um dia, meu amor (e talvez cedo,
Que já sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
As ternas juras que te fiz a medo…

Então, da casta alcova no segredo,
Da lamparina ao trémulo clarão,
Ante ti surgirei, espectro vão,
Larva fugida ao sepulcral degredo…

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
E aflitos ais, estenderás os braços
Tentando segurar-te aos meus vestidos…

— «Ouve! espera!» — Mas eu, sem te escutar,
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços
E como fumo sumir-me-ei no ar!

Mulher

“Já é demais! – me disseste – o teu ciúme é irritante
e há de acabar na certa, por nos indispor,
– fazes do meu viver um martírio constante
e ao que vês, tu dás sempre afinal outra côr”

Eu resolvi então, daquele dia em diante,
sem nada te dizer, e sem nada propor,
– sufocar esse amor egoísta e dominante
e o ciúme… que era o fel que eu punha em nosso amor!

Hoje… Tu sofres mais quando em minha presença…
e há pouco (creio até que bateste com os pés!)
– já achavas demais a minha indiferença…

E possa eu compreender, afinal, o que queres,
quando enfim descobri, sem surpresa, que tu és
incoerente… e igualzinha a todas as mulheres!

A Solidão e Sua Porta

A Francisco Brennand

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),

quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitectar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

Imprevidência

Vamos seguindo assim, desprevenidamente
a brincar com o Destino… e a pensar que brincamos…
quando, na realidade, ele brinca com a gente,
e trama qualquer coisa que não suspeitamos…

Julgamos dominá-lo… e, que somos ? – dois ramos
arrastado por ele ao sabor da corrente…
Bem que percebemos quando nos amamos
mas teimamos, seguindo assim, inutilmente…

Prolongamos em vão um traiçoeiro dilema:
– ou tu te entregarás um dia, com ternura,
ou teremos criado um eterno problema…

Fora disto, há o recuo, bem sei… Mas assim
– tua vida há de ser um remorso sem cura!
– minha vida há de ser uma angústia sem fim!