Sonetos sobre Palavras

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Sonetos de palavras escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Senhor João Lopes, O Meu Baixo Estado

Senhor João Lopes, o meu baixo estado
ontem vi posto em grau tão excelente,
que vós, que sois enveja a toda a gente,
só por mim vos quiséreis ver trocado.

Vi o gesto suave e delicado
que já vos fez, contente e descontente,
lançar ao vento a voz tão docemente
que fez o ar sereno e sossegado.

Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto
ninguém diria em muitas; eu só, cego,
magoado fiquei na doce fala.

Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego!
Um, porque os corações obriga a tanto;
outra, porque os estados desiguala.

Crucificada

Amiga… noiva… irmã… o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las,
Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!
– Hei de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei de poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.

E depois… Ah! depois de dores tamanhas,
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!

Vencido

Bem que te quis dizer as palavras mais duras,
gritar que te desprezo… que te odeio enfim…
fingir que já não tenho um mundo de tortura
no mundo de aflições que sinto dentro de mim…

Bem que quis te ocultar as minhas desventuras,
escarnecer da dor que ao meu viver deu fim,
relembrar a sorrir as tuas falsas juras
e ofender-te, e magoar-te, e me vingar assim…

Bem que tudo tentei. Mas nada consegui.
E maldigo-me agora, e sofro, e desespero,
porque não soube odiar. . . porque não te ofendi…

Foste cruel… Entretanto, em meu tormento atroz,
– foge-me a própria vida se esquecer te quero…
– se te quero ofender, falta-me a própria voz!

A Mão que a Seu Amigo Hesita em Dar-se

Perguntaste se eu amo o meu amigo?
como rompendo um demorado açude
na tua voz quis hausto que transmude
todo o cristal dos ímpetos consigo

Neste meu choro enevoado abrigo
pôs-me a palavra o peito em alaúde
que uma doce pergunta tua ajude
no sim furtivo que eu levei comigo

Mas a meu lábio lento em confessar-se
um mestre inda melhor o cunharia
A mão que a seu amigo hesita em dar-se

ele a tomou o que mais firme a guia
para que ao coração secreto amando
ao mundo todo em rimas o vá dando.

Tradução de Vasco Graça Moura

O Começo Antes Do Começo

A chuva cheia chama por um nome
nesse som abafado em água funda.
No líquido chamado há um rio que some
afogando a palavra, flor fecunda,

já morta no som cavo que consome
o provável vestígio que se afunda.
Na sanha esse fastio enfeixa a fome
um som de ossos de vértebras rotundas,

harpa transida em tons e semitons:
Uma dodecafônica cantata
deassomada assonância se compõe

no dissonante sonho em catarata.
Chuva de vozes, chuva de Breton:
Nasce o cão andaluz e um sol desata-se.

Dois Caminhos

Eu queria te dar minha emoção mais pura,
associar-te ao meu sonho e dividir contigo
migalha por migalha, o pouco de ventura
que pudesse colher no caminho onde sigo…

E esse estranho desejo em que se desfigura
a palavra de amor e pureza que eu digo,
– e queria te dar essa minha ternura
que às vezes, por trair-se ao teu olhar, maldigo…

Bem que eu quis te ofertar meu destino, meu sonho,
minha vida, e até mesmo esta efêmera glória
que desperdiço a cantar nos versos que componho…

Nada quiseste…E assim, os sonhos que viviam,
se ontem, puderam ser um começo de história,
hoje, são dois caminhos que se distanciam…

Inscrição

Dos vastos horizontes me invocaram,
Noutras formas artísticas imersos,
Revoltos pensamentos que formaram
Todo o amor e pureza dos meus versos.

Melodias que os ventos orquestraram
Foram verbo dos átomos dispersos:
Palavras que meus olhos soletraram
Num indizível sonho de universos.

Foram aromas das fecundas messes:
Como se tu, ó Terra, mos dissesses
Numa profunda comunhão de mágoas.

Geraram-mos os génios das Montanhas
Na sua fé de catedrais estranhas,
Na panteísta devoção das Águas.

Oração Da Noite

Ajoelhada, ó meu Deus, e as duas mãos unidas,
Olhos fitos na Cruz, imploro a tua graça…
Esconde-me, Jesus! da treva que esvoaça
Na tristeza e no horror das noites mal dormidas,

Maria! Virgem mãe das almas compungidas,
Sorriso no prazer, conforto na desgraça…
Recolhe essa oração que nos meus lábios passa
Em palavras de fé no teu amor ungidas.

Anjo de minha guarda, ó doce companheiro!
Tu que levas do berço ao porto derradeiro
O lúrido batel de meu sonhar sem fim,

Dá-me o sono que traz o bálsamo ao tormento,
Afoga o coração no mar do esquecimento…
Abre as asas, meu anjo, e estende-as sobre mim.

Espera

Se tivesse mandado uma palavra: -“espera!”
Sem mais nada, nem mesmo explicar até quando,
eu teria ficado até hoje esperando…
– era a eterna ilusão de que fosses sincera…

Que importa a vida, o Sol, a primavera,
se eras a vida, o Sol, a flor desabrochando?
Se tivesses mandado uma palavra: -“espera!”
eu teria ficado até hoje esperando…

Não mandaste, tu nada disseste, e eu segui
sem saber que fazer da vida que era tua
procurando com o mundo esquecer-me de ti…

E afinal o destino, irônico e mordaz,
ontem, fez-me cruzar com o teu olhar na rua,
ouvir dizer-te: -“espera!…”E ser tarde demais…

Lavoura

Calma colheita do verbo sereno
Madura mansidão que se apresenta
Nessa escolha do fruto mais ameno
Servido à mesa suado e tão sedento.

Palavras semeadas num terreno
Quintal comum, adubo que se inventa
Na lida da lavoura em plano pleno
De quem se sabe longe da tormenta.

O fruto verde envolto nas lianas
Há muito debelado do seu travo
Hoje se escolhe o doce em filigranas.

No duro aprendizado fiz-me escravo
Cavalo de um arado em terra plana
Transpirando crepúsculos no estábulo.