Razões
“Razões…”
I
Pensarás que é mentira e é no entanto verdade
– mas me afasto de ti, propositadamente,
pelo estranho prazer de sentir que a saudade
ainda torna maior o coração da gente…Parto! Bem sei que parto sem necessidade!
Quero ver os teus olhos turvos, de repente,
embora nĂŁo compreenda essa felicidade
que assim te faz sofrer comigo inutilmente!Quero ouvir-te na hora da despedida
que eu volte bem depressa para a tua vida,
– quero no Ăşltimo beijo um soluço interior…Que enquanto ficas sĂł, e enquanto vou sozinho,
sabemos que a saudade vai tecendo o ninho
que há de aquecer na volta o nosso eterno amor!
Sonetos sobre Parto
13 resultadosSoneto XXXXIIII
Do fundo sobe do mar Indo acima
A recolher o orvalho a concha, e nela,
Despois que pouco a pouco se congela,
A pérola nos dá de tanta estima.Hoje, despois que o Céu choveu de cima
O rico orvalho, aquela concha, aquela
Divina humana, mais que todas bela,
O mundo pobre com seu parto anima.Mas ai que a concha aberta o orvalho fino
Recebe, e em pedra dá; porém, Maria,
De outra invenção e modo extraordinário.E como vem tão pobre este minino?
Vem tosca pedra, e seu preço e valia
Só conhece o discreto lapidário.
Casou-Se Nesta Terra Esta E Aquele
Casou-se nesta terra esta e aquele.
Aquele um gozo filho de cadela,
Esta uma donzelĂssima donzela,
Que muito antes do parto o sabia ele.Casaram por unir pele com pele;
E tanto se uniram, que ele com ela
Com seu mau parecer ganha para ela,
com seu bom parecer ganha para ele.Deram-lhe em dote muitos mil cruzados,
Excelentes alfaias, bons adornos,
De que estĂŁo os seus quartos bem ornados:Por sinal que na porta e seus contornos
Um dia amanheceram, bem contados,
TrĂŞs bacias de trampa e doze cornos.
Maes, Vinde Ouvir!
Longe de ti, na cella do meu quarto,
Meu copo cheio de agoirentas fezes,
Sinto que rezas do Outro-mundo, harto,
Pelo teu filho. Minha Mãe, não rezes!Para fallar, assim, ve tu! já farto,
Para me ouvires blasphemar, ás vezes,
Soffres por mim as dores crueis do parto
E trazes-me no ventre nove mezes!Nunca me houvesses dado á luz, Senhora!
Nunca eu mamasse o leite aureolado
Que me fez homem, magica bebida!FĂ´ra melhor nĂŁo ter nascido, fĂ´ra,
Do que andar, como eu ando, degredado
Por esta Costa d’Africa da Vida…
Idealização Da Humanidade Futura
Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
– Homens que a herança de Ămpetos impuros
Tornara Ă©tnicamente irracionais! –NĂŁo sei que livro, em letras garrafais,
Meus olhos liam! No hĂşmus dos monturos,
Realizavam-se os partos mais obscuros,
Dentre as genealogias animais!Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciĂŞncia daquela multidĂŁo…E, em vez de achar a luz que os CĂ©us inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!
Homo
Nenhum de vĂłs ao certo me conhece,
Astros do espaço, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece…NinguĂ©m sabe quem sou… e mais, parece
Que há dez mil anos já, neste degredo,
Me vĂŞ passar o mar, vĂŞ-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece…Sou um parto da Terra monstruoso;
Do hĂşmus primitivo e tenebroso
Geração casual, sem pai nem mĂŁe…Misto infeliz de trevas e de brilho,
Sou talvez Satanás; — talvez um filho
Bastardo de Jeová; — talvez ninguém!
A França!
Vou sobre o Oceano (o luar de lindo enleva!)
Por este mar de Gloria, em plena paz.
Terras da Patria somem-se na treva,
Agoas de Portugal ficam, atraz…Onde vou eu? Meu fado onde me leva?
Antonio, onde vaes tu, doido rapaz?
NĂŁo sei. Mas o vapor, quando se eleva,
Lembra o meu coração, na ancia em que jaz…Ă“ Luzitania que te vaes á vela!
Adeus! que eu parto (rezarei por ella…)
Na minha Nau Catharineta, adeus!Paquete, meu paquete, anda ligeiro!
Sobe depressa á gavea, marinheiro,
E grita, França! pelo amor de Deus!…
Soneto Da Enseada
Sou sempre o que está além de mim
como a ponte de Brooklyn ao pĂ´r-do-sol.
Sou o peixe buscado pelo anzol
e o caracol imĂłvel no jardim.De mim mesmo me parto, qual navio,
e sou tudo o que vive além de mim:
o barulho da noite e o cheiro de jasmim
que corre entre as estrelas como um rio.Quem atravessa a ponte logo aprende
que a vida Ă© simplesmente a travessia
entre um aquém e um além que são dois nadas.Na madrugada escura a luz se acende.
Que luz? De que vigĂlia ou de que dia?
De que barco ancorado na enseada?
LI
Adeus, Ădolo belo, adeus, querido,
Ingrato bem; adeus: em paz te fica;
E essa vitĂłria mĂsera publica,
Que tens barbaramente conseguido.Eu parto, eu sigo o norte aborrecido
De meu fado infeliz: agora rica
De despojos, a teu desdém aplica
O rouco acento de um mortal gemido.E se acaso alguma hora menos dura
Lembrando-te de um triste, consultares
A série vil da sua desventura;Na imensa confusão de seus pesares
Acharás, que ardeu simples, ardeu pura
A vĂtima de uma alma em teus altares.
Poeira (Para José Felix)
Do pĂł ao pĂłlen posta-se o poema
na penumbra do parto antecipado.
Abre-se uma janela sem algema
presa somente do seu prĂłprio fado.Areia e barro, sol com sua gema,
a gala clara do ovo, visgo dado
ao solo só de vértebras, seu tema
variado na avena: chĂŁo arado.O tropo, o trapo, as vestes: eis aĂ
a massa que caldeia essa bigorna
ensolando alimárias ao se de si.Nada é constante e tudo se transforma.
Eppur si muove em ánima no giz
escrito no vaivém se vai e torna.
Mais Há-de Perder quem Mais Alcança
De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
NĂŁo sei para que Ă© ter contentamento,
Se mais há-de perder quem mais alcança!Mas dou-vos esta firme segurança:
Que, posto que me mate o meu tormento,
Pelas águas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
Que com cousa outra alguma se contentem:
Antes os esqueçais, que vos esqueçam.Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereçam
A glĂłria que em sofrer tal pena sentem.
Salomé
InsĂłnia rĂ´xa. A luz a virgular-se em mĂŞdo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…
Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segrĂŞdo…Tudo Ă© capricho ao seu redĂłr, em sombras fátuas…
O arĂ´ma endoideceu, upou-se em cĂ´r, quebrou…
Tenho frio… Alabastro!… A minh’Alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estátuas…Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecĂ´a-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me:Mordoura-se a chorar–ha sexos no seu pranto…
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na bĂ´ca imperial que humanisou um Santo…
O Morcego
Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vĂŞde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela Ăgneo e escaldante molho.“Vou mandar levantar outra parede…”
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tĂŁo feio parto?!A ConsciĂŞncia Humana Ă© este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!