Qual tem a borboleta por costume
Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agore se consume,Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, AĂłnia bela;
E abraso-me por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;Porém, não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glĂłria maior, estĂĄ contente.
Sonetos sobre Pensamentos de LuĂs de CamĂ”es
38 resultadosQue Pode JĂĄ Fazer Minha Ventura
Que pode jĂĄ fazer minha ventura
que seja para meu contentamento.,
Ou como fazer devo fundamento
de cousa que o nĂŁo tem, nem Ă© segura?Que pena pode ser tĂŁo certa e dura
que possa ser maior que meu tormento?
Ou como recearĂĄ meu pensamento
os males, se com eles mais se apura?Como quem se costuma de pequeno
com peçonha criar por mão ciente,
da qual o uso jĂĄ o tem seguro;assi de acostumado co veneno,
o uso de sofrer meu mal presente
me faz nĂŁo sentir jĂĄ nada o futuro.
Nunca em amor danou o atrevimento
Nunca em amor danou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida cobardia
De pedra serve ao livre pensamento.Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A Estrela nele encontra que lhe Ă© guia;
Que o bem que encerra em si a fantasia,
São u~as ilusÔes que leva o vento.Abrir-se devem passos à ventura;
Sem si próprio ninguém serå ditoso;
Os princĂpios somente a Sorte os move.Atrever-se Ă© valor e nĂŁo loucura;
PerderĂĄ por cobarde o venturoso
Que vos vĂȘ, se os temores nĂŁo remove.
Num Tão Alto Lugar, De Tanto Preço
Num tão alto lugar, de tanto preço,
este meu pensamento posto vejo,
que desfalece nele inda o desejo,
vendo quanto por mim o desmereço.Quando esta tal baixesa em mim conheço,
acho que cuidar nele Ă© grĂŁo despejo,
e que morrer por ele me Ă© sobejo
e mor bem para mim, do que mereço.O mais que natural merecimento
de quem me causa um mal tĂŁo duro e forte,
o faz que vĂĄ crecendo de hora em hora.Mas eu nĂŁo deixarei meu pensamento,
porque inda que este mal me causa a morte,
Un bel morir tutta la vita onora.
Seguia Aquele Fogo, Que O Guiava
Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
as forças lhe faltavam jå e o alento,
Amor lhas refazia e renovava.Despois que viu que a alma lhe faltava,
nĂŁo esmorece; mas, no pensamento,
(que a lĂngua jĂĄ nĂŁo pode) seu intento
ao mar que lho cumprisse, encomendava.à mar (dezia o moço só consigo),
jå te não peço a vida; só queria
que a de Hero me salves; nĂŁo me veja…Este meu corpo morto, lĂĄ o desvia
daquela torre. SĂȘ me nisto amigo,
pois no meu maior bem me houveste enveja!
Pede o Desejo, Dama, que Vos Veja
Pede o desejo, Dama, que vos veja:
NĂŁo entende o que pede; estĂĄ enganado.
Ă este amor tĂŁo fino e tĂŁo delgado,
Que quem o tem nĂŁo sabe o que deseja.NĂŁo hĂĄ cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
NĂŁo quer logo o desejo o desejado,
SĂł por que nunca falte onde sobeja.Mas este puro afecto em mim se dana:
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,Assim meu pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
Males, que Contra Mim vos Conjurastes
Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto hĂĄ-de durar tĂŁo duro intento?
Se dura, por que dure meu tormento,
Baste-vos quanto jĂĄ me atormentastes.Mas se assim porfiais, porque cuidastes
Derribar o meu alto pensamento,
Mais pode a causa dele, em que o sustento,
Que vós, que dela mesma o ser tomastes.E pois vossa tenção com minha morte
Ă de acabar o mal destes amores,
Dai jĂĄ fim a tormento tĂŁo comprido.Assim de ambos contente serĂĄ a sorte:
Em vĂłs por acabar-me, vencedores,
Em mim porque acabei de vĂłs vencido.
Um Mover D’olhos, Brando E Piadoso
Um mover d’olhos, brando e piadoso,
sem ver de quĂȘ; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravĂssimo e modesto;
ĂŒa pura bondade, manifesto
indĂcio da alma, limpo e gracioso;um encolhido ousar; ĂŒa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;esta foi a celeste fermosura
da minha Circe, e o mĂĄgico veneno
que pĂŽde transformar meu pensamento.
Se Tomar Minha Pena Em PenitĂȘncia
Se tomar minha pena em penitĂȘncia
do erro em que caiu o pensamento,
nĂŁo abranda, mas dobra meu tormento,
a isto, e a mais, obriga a paciĂȘncia.E se ĂŒa cor de morto na aparĂȘncia,
um espalhar suspiros vĂŁos ao vento,
em vĂłs nĂŁo faz, Senhora, movimento,
fique meu mal em vossa consciĂȘncia.E se de qualquer ĂĄspera mudança
toda a vontade isenta Amor castiga
(como eu vi bem no mal que me condena);e se em vĂłs nĂŁo s’entende haver vingança,
serå forçado (pois Amor me obriga)
que eu sĂł de vossa culpa pague a pena.
Conversação Doméstica Afeiçoa
Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sĂŁ vontade,
ora de ĂŒa amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.Se despois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.NĂŁo sĂŁo isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparĂȘncia,
por fazer delicadas escrituras.Metido tenho a mĂŁo na consciĂȘncia,
e nĂŁo falo senĂŁo verdades puras
que me ensinou a viva experiĂȘncia.
Vos Foi Beijar na Parte Onde se Via
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciĂȘncia fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.Ditosa aquela flama que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vĂłs, e queima o fogo aquela neve
Que queima coraçÔes e pensamentos.
Enquanto Quis Fortuna Que Tivesse
Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juĂzo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos nĂŁo dissesse.Ă vĂłs que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tĂŁo diversos,verdades puras sĂŁo, e nĂŁo defeitos…
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
Doces Ăguas E Claras Do Mondego
Doces ĂĄguas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;de vós me aparto; mas, porém, não nego
que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.Bem pudera Fortuna este instrumento
d’alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;mas alma, que de cĂĄ vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vĂłs, ĂĄguas, voa, e em vĂłs se banha.
Se De Vosso Fermoso E Lindo Gesto
Se de vosso fermoso e lindo gesto
nasceram lindas flores para os olhos,
que para o peito sĂŁo duros abrolhos,
em mim se vĂȘ mui claro e manifesto:pois vossa fermosura e vulto honesto
em os ver, de boninas vi mil molhos;
mas se meu coração tivera antolhos,
nĂŁo vira em vĂłs seu dano o mal funesto.Um mal visto por bem, um bem tristonho,
que me traz elevado o pensamento
em mil, porém diversas, fantasias,nas quais eu sempre ando, e sempre sonho;
e vĂłs nĂŁo cuidais mais que em meu tormento,
em que fundais as vossas alegrias.
Aqueles Claros Olhos Que Chorando
Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farĂŁo? Quem mo diria?
Se porventura estarĂŁo em mim cuidando?Se terĂŁo na memĂłria, como ou quando
deles me vim tĂŁo longe de alegria?
Ou s’estarĂŁo aquele alegre dia
que torne a vĂȘ-los, n’alma figurando?Se contarĂŁo as horas e os momentos?
Se acharĂŁo num momento muitos anos?
Se falarĂŁo co as aves e cos ventos?Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausĂȘncia, tĂŁo doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!
Vencido estĂĄ de amor
Vencido estĂĄ de amor Meu pensamento
O mais que pode ser Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e InstituĂda,
Oferecendo tudo A vosso intento.Contente deste bem, Louva o momento
Outra vez renovar TĂŁo bem perdida;
A causa que me guia A tal ferida,
Ou hora em que se viu Seu perdimento.Mil vezes desejando EstĂĄ segura
Com essa pretensĂŁo Nesta empresa,
TĂŁo estranha, tĂŁo doce, Honrosa e altaVoltando sĂł por vĂłs Outra ventura,
Jurando nĂŁo seguir Rara firmeza,
Sem ser no vosso amor Achado em falta.
O MĂĄgico Veneno
Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quĂȘ; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravĂssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
IndĂcio da alma, limpo e gracioso;Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mĂĄgico veneno
Que pĂŽde transformar meu pensamento.
Esforço Grande, Igual Ao Pensamento;
Esforço grande, igual ao pensamento;
pensamentos em obras divulgados,
e nĂŁo em peito timido encerrados
e desfeitos despois em chuva e vento;animo da cobiça baixa isento,
dino por isso sĂł de altos estados,
fero açoute dos nunca bem domados
povos do Malabar sanguinolento;gentileza de membros corporais,
ornados de pudica continĂȘncia,
obra por certo rara de natura:estas virtudes e outras muitas mais,
dinas todas da homĂ©rica eloquĂȘncia,
jazem debaixo desta sepultura