Quando Cuido No Tempo Que, Contente
Quando cuido no tempo que, contente,
vi as pérolas, neve, rosa e ouro,
como quem vê por sonhos um tesouro,
parece tenho tudo aqui presente.Mas tanto que se passa este acidente,
e vejo o quão distante de vós mouro,
temo quanto imagino por agouro,
porque d’imaginar também me ausente.Já foram dias em que por ventura
vos vi, Senhora (se, assi dizendo, posso
co coração seguro estar sem medo);Agora, em tanto mal não mo assegura
a própria fantasia e nojo vosso:
eu não posso entender este segredo!
Sonetos sobre Próprio
141 resultadosSoneto Da Mulher Inútil
De tanta graça e de leveza tanta
Que quando sobre mim, como a teu jeito
Eu tão de leve sinto-te no peito
Que o meu próprio suspiro te levanta.To contra quem me esbato liquefeito
Rocha branca! brancura que me espanta
Brancos seios azuis, nívea garganta
Branco pássaro fiel com que me deito.Mulher inútil, quando nas noturnas
Celebrações, náufrago em teus delírios
Tenho-te toda, branca, envolta em brumasSão teus seios tão tristes como urnas
São teus braços tão finos como lírios
É teu corpo tão leve como plumas.
No Turbilhão
(A Jaime Batalha Reis)
No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
Arrebatado em vastos turbilhões…N’uma espiral, de estranhas contorsões,
E d’onde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições…— Fantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!…
Ad Amicos
Em vão lutamos. Como névoa baça,
A incerteza das coisas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça.O pensamento, que mil planos traça,
É vapor que se esvae e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.Filhos do Amor, nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor d’um presentir divino;Mas n’um deserto só, árido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o Destino
Paira mudo e impassível sobre o mundo.
Carlos Gomes
Essa que plange, que soluça e pensa,
Amorosa e febril, tímida e casta,
Lira que raiva, lira que devasta,
E que dos próprios sons vive suspensa.Guarda nas costas uma escala imensa,
Que, quando rompe, espaço fora, arrasta
Ora do mar as queixas ora a vasta
Sussurração de uma floresta densa.Ei-la muda, mas tal intensidade
Teve a música enorme do seu choro
O dilúvio orquestral dos seus lamentos.Que muda assim, rotas as cordas há de
Para sempre vibrar o eco sonoro
Que sua alma lançou aos quatro ventos.
Bem Mostrou o Pintor Estilo Agudo
Bem mostrou o pintor estilo agudo
No retrato, senhora, que vos mando,
Pois não só o parecer foi retratando,
Mas os efeitos com mais alto estudo.Se vai mudo ante vós, eu fico mudo;
Se surdo, e cego, bem cego, e surdo ando;
Se morto, a vida vai-se-me acabando;
Em fim que vai conforme a mim em tudo.Mas na ventura fica avantajado,
Que vai (com gosto vosso) à vossa mão,
Onde será melhor visto, e tratado:Mercês, que se deviam por razão
Ao próprio original, porque o traslado
Não vê, nem sente de que preço são.
A Praça
A praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui … Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante …Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena…De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.
Dualidade
Sei que é Amor, meu amor…porque o desejo
o meu próprio desejo tão violento,
dir-se-ia ter pudor, ter sentimento,
quando estás junto a mim, quando te vejo.É um clarim a vibrar como um harpejo,
misto de impulso e de deslumbramento.
Sei que é Amor, meu amor…porque o desejo
é desejo e ternura a um só momento.Beijo-te a boca, as mãos, e hei de beijar-te
nessa dupla emoção, (violento e terno)
em que a minha alma inteira se reparte,– e a perceber em meu estranho ardor,
que há uma luta entre o efêmero e o eterno,
entre um demônio e um anjo em todo Amor!
No Egito
Sob os ardentes sóis do fulvo Egito
De areia estuosa, de candente argila,
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,
Abre as asas no páramo infinito.O Egito é sempre o amigo, o velho rito
Onde um mistério singular se asila
E onde, talvez mais calma, mais tranqüila
A alma descansa do sofrer prescrito.Sobre as ruínas d’ouro do passado,
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
Torva morte espectral pairou ufana…E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
Árido, pétreo, silencioso, mudo,
Parece morta a própria dor humana!
Milagre De Amor
Que mimporta, meu amor, a poesia que tanto
te preocupa porque a fiz antes de ti ?
Hoje… para não ver os teus olhos em pranto
por Deus que eu rasgaria os versos que escrevi…Hoje, já não são meus… Como que por encanto
estes poemas que fiz, que sonhei, que vivi,
são estranhos que seguem cantando o meu canto
a falarem de um velho mundo, que esqueci…De repente a mudança é tão grande, é tamanha,
que o passado se esvai numa sombra perdida,
e a minha própria voz soa falsa e estranha…Óh Milagre de Amor… ( Que por louco me tomem!)
Mas sinto uma alma nova em mim… tenho oura vida!!
E um novo coração no peito… e sou outro homem!
Ricordanza Della Mia Gioventú
A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha mãe, ralhava…
Via naquilo a minha própria ruína!Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
“- Não, não fora ela -” E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito…
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha…Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
Sem Causa a Infância Ri
Sem causa a Infância ri, sem causa chora:
Incauta se despenha a mocidade;
Sacode o jugo, e nela a liberdade,
A caça, o jogo, o amor, tudo a namora.Das honras o varão se condecora;
Tudo é nele ilusão, tudo vaidade:
Junta Tesouros a avarenta idade;
Diz mal do nosso, e ao tempo andado adora.Tormento é toda a vida, é toda enganos:
Quando uns afectos vence a novos corre,
E tarde reconhece os próprios danos:Porque enfim se a prudência nos socorre,
Ditada na lição dos longos anos,
Quando se sabe, então é que se morre.
Quando A Suprema Dor Muito Me Aperta
Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconserta.Assi, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
que mostra ser engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.Porque essa própria imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.Ditosa é, logo, a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
Corre, Já entre Serras Escarpadas
Corre, já entre serras escarpadas,
Já sobre largos campos, murmurando.
o Tieté, e, as águas engrossando,
soberbo alaga as margens levantadas.Penedos, pontes, árvores copada:
quanto topa, de cólera escumando,
com fragor espantoso vai rolando
nos vórtices das ondas empoladas.Mas quando mais caudal, mais orgulhoso,
as margens rompe, cai precipitado,
atroando ao redor toda a campina.O próprio retrato é dum poderoso,
pois quanto mais sublime é seu estado
mais estrondosa é a sua ruína.
XXII
Neste álamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;Aqui, onde não geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sabre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.As lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D’ânsia mortal a cópia derretida:A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.
Sorriso Interior
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.O ser que é ser tranforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!
Soror Saudade
A Américo Durão
Irmã, Soror Saudade, me chamaste…
E na minh’alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste.Numa tarde de Outono o murmuraste;
Toda a mágoa do Outono ele me trouxe;
Jamais me hão-de chamar outro mais doce;
Com ele bem mais triste me tornaste…E baixinho, na alma de minh’alma,
Como bênção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,Como se fossem pétalas caindo,
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: “Irmã, Soror Saudade”…
Nerah
(Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea)
A Vítor LobatoNerah não brinca mais, não dança mais. — E agora
Que vão-se apropinquando os tempos invernosos,
Nerah traz uns receios tímidos, nervosos,
De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
Se vão embora, embora à vinda dos invernos,
Seguindo em debandada os úmidos galernos —
— lembrando um roto bando informe de mendigos.Não canta o sabiá que triste na gaiola,
Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
De um riso — aquela flor que esvai-se, branca e fria.Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de interjeições!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.
A Beleza
De um sonho escultural tenho a beleza rara,
E o meu seio, — jardim onde cultivo a dor,
Faz despertar no Poeta um vivo e intenso amor,
Com a eterna mudez do marmor’ de CarraraSou esfinge subtil no Azul a dominar,
Da brancura do cisne e com a neve fria;
Detesto o movimento, e estremeço a harmonia;
Nunca soube o que é rir, nem sei o que é chorar.O Poeta, se me vê nas atitudes fátuas
Que pareço copiar das mais nobres estátuas,
Consome noite e dia em estudos ingentes..Tenho, p’ra fascinar o meu dócil amante,
Espelhos de cristal, que tornaram deslumbrante
A própria imperfeição: — os meus olhos ardentes!Tradução de Delfim Guimarães
É Bem Feliz
É bem feliz por certo, o que somente
Ao rústico lavor acostumado
Conduzir sabe os bois, reger o arado,
E dar à terra a provida semente.A arte de a lavrar sempre inocente
Estuda só, e ignora afortunado
As novas leis, as máximas de Estado,
E os documentos de enganar a gente.Projectos vãos não forma, e sempre isento
Da soberba ambição, nunca a Lisboa
Foi dobrar o joelho ao valimento.Cabana humilde, onde nasceu, povoa;
E seguro no próprio abatimento,
Só tem medo do Céu, quando trovoa.