Se Eu Fosse Um Padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
nĂŁo falaria em Deus nem no Pecado
– muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terrĂveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!Porque a poesia purifica a alma
… a um belo poema – ainda que de Deus se aparte –
um belo poema sempre leva a Deus!
Sonetos sobre Sempre
313 resultadosSem Esperança
Ó cândidos fantasmas da Esperança,
Meigos espectros do meu vĂŁo Destino,
Volvei a mim nas leves ondas do Hino
Sacramental de Bem-aventurança.Nas veredas da vida a alma não cansa
De vos buscar pelo Vergel divino
Do céu sempre estrelado e diamantino
Onde toda a alma no PerdĂŁo descansa.Na volĂşpia da dor que me transporta,
Que este meu ser transfunde nos Espaços,
Sinto-te longe, ó Esperança morta.E em vão alongo os vacilantes passos
Ă€ procura febril da tua porta,
Da ventura celeste dos teus braços.
Absurdo
Ninguém te disse nada, ninguém soube
do anel que se perdia em tuas mĂŁos
e crescia nas coisas reduzindo-as
Ă ausĂŞncia mais completa do existir.Mesmo quando o limite era essa zona
fugidia de gestos e silĂŞncios
e a noite desdobrava em tua pele
o mapa das cidades compassivas,ninguĂ©m pĂ´de saber do imprevisĂvel,
do lado mais secreto e numeroso
que havia em ti, na vida que buscavase que perdias sempre, por mais fundo,
por mais limpo que fosse o privilégio
da mágoa sempre nova de perdê-la.
Soneto XXV
O nosso ninho, a nossa casa, aquela
nossa despretensiosa água-furtada,
tinha sempre gerânios na sacada
e cortinas de tule na janela.Dentro, rendas, cristais, flores… Em cada
canto, a mĂŁo da mulher amada e bela
punha um riso de graça. Tagarela,
teu cenário cantava Ă minha entrada.Cantava… E eu te entrevia, Ă luz incerta,
braços cruzados, muito branca, ao fundo,
no quadro claro da janela aberta.Vias-me. E entĂŁo, num sĂşbito tremor,
fechavas a janela para o mundo
e me abrias os braços para o amor!
Olvido
Desce por fim sobre o meu coração
O olvido. Irrevocável. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas nĂŁo logradas ou perdidas.O barro que em quimera modelaste
Quebrou-se-te nas mĂŁos. Viça uma flor…
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste…Ias andar, sempre fugia o chĂŁo,
Até que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação…
VII
Versos feitos por mim na mocidade
O mérito só tem sentimento.
Eram, pra assim dizer, um instrumento
Mais que o prazer ecoando-me a saudade.Pospondo a fantasia sempre Ă verdade
Melhor encontrei nesta o ornamento
E, no estudo apurando o sentimento,
Quanto tenho a saber disse-me a idade.É isso o que vos quero eu ensinar,
Amando-vos qual pode um terno avĂ´,
A quem para as suas cĂŁs engrinaldarMelhor sĂł poderia o que eu vou
Em carĂcias tĂŁo vossas procurar,
Sentindo que de vĂłs inda mais sou.
Soneto De Quarta-Feira De Cinzas
Por seres quem me foste, grave e pura
Em tĂŁo doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhĂŁ raiada.Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namoradaPorque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura.Por nĂŁo te possuir, tendo-te minha
Por sĂł quereres tudo e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.
Par Constante
Dia dois… uma festa… Era o mĂŞs de janeiro…
Festa da minha vida… A noite azul, brilhante…
Chegaste… E eu fui teu par… fui o teu par primeiro…
Dançamos… (como Ă© bom lembrar aquele instante!)Tu, tĂŁo linda, nem sei… Eu, feliz, petulante,
um pouco petulante, sim… mas cavalheiro…
Dançamos toda a noite… E fui teu par constante…
Nem sĂł teu par constante… Eu fui teu par primeiro…Quantas cousas te disse… E assim juntos, os dois,
com os meus olhos nos teus – afinal, quem diria
o mundo que ainda havia de surgir depois?Quem diria ao nos ver, talvez, aquele instante,
que o nosso par feliz, constante aquele dia,
seria a vida inteira e sempre um par constante!
LXXIX
Entre este álamo, o Lise, e essa corrente,
Que agora estĂŁo meus olhos contemplando,
Parece, que hoje o céu me vem pintando
A mágoa triste, que meu peito sente.Firmeza a nenhum deles se consente
Ao doce respirar do vento brando;
O tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.Na lĂquida porção, na vegetante
CĂłpia daquelas ramas se figura
Outro rosto, outra imagem semelhante:Quem nĂŁo sabe, que a tua formosura
Sempre móvel está, sempre inconstante,
Nunca fixa se viu, nunca segura?
Em Busca Da Beleza III
SĂł que puder obter a estupidez
Ou a loucura pode ser feliz.
Buscar, querer, amar… tudo isto diz
Perder, chorar, sofrer, vez apĂłs vez.A estupidez achou sempre o que quis
Do cĂrculo banal da sua avidez;
Nunca aos loucos o engano se desfez
Com quem um falso mundo seu condiz.Há dois males: verdade e aspiração,
E há uma forma só de os saber males:
É conhecĂŞ-los bem, saber que sĂŁoUm o horror real, o outro o vazio –
Horror nĂŁo menos – dois como que vales
Duma montanha que ninguém subiu.
Soneto III
A D. FernĂŁo Martins Mascarenhas quando o fizeram Bispo.
Espanta crecer tanto o Crocodilo
SĂł por seu acanhado nascimento,
Que se maior nascera, mais isento
Estivera d’espanto o pátrio Nilo.Em vĂŁo levantará meu baixo estilo
Vosso Pontifical novo ornamento,
Pois no ventre o imortal merecimento
Vo-lo talhou, para despois visti-lo.Tardou, mas veio, que a quem mais merece
Muito mais tarde vir o prémio é certo,
E sempre tarda, inda que venha cedo.Os Céus, que do primeiro estão mais perto,
Mais devagar se movem; quem soubesse
Trás d’aquele segredo, este segredo?
Vozinha
Velha, velhinha, da doçura boa
De uma pomba nevada, etérea, mansa.
Alma que se ilumina e se balança
Dentre as redes da Fé que nos perdoa.Cabeça branca de serena leoa,
Carinho, amor, meiguice que nĂŁo cansa,
Coração nobre sempre como a lança
Que nĂŁo vergue, nĂŁo fira e que nĂŁo doa.Olhos e voz de castidades vivas,
Pão ázimo das Páscoas afetivas,
Simples, tranqĂĽila, dadivosa, franca.Morreu tal qual vivera, mansamente,
Na alvura doce de uma luz algente,
Como que morta de uma morte branca.
Prece A Anchieta
Santo: erguesses a cruz na selva escura;
HerĂłi: plantasses nossa velha aldeia;
Mestre: ensinasses a doutrina pura;
Poeta: escrevesses versos sobre a areia!Golpeia a cruz a foice inculta e dura;
Invade a vila multidĂŁo alheia;
Morre a voz santa entre a distância e a altura;
Apaga o poema a onda espumejante e cheia…Santo, herĂłi, mestre e poeta: — Pela glĂłria
que destes a esta Terra e a sua HistĂłria,
Pela dor que sofremos sempre nĂłs.Pelo bem que quisesses a este povo,
O novo Cristo deste Mundo Novo,
Padre José de Anchieta, orai por nós!
A uma Mulher
Pra vĂłs sĂŁo estes versos, pla consoladora
Graça dos olhos onde chora e ri um sonho
Doce, pla vossa alma pura e sempre boa,
Versos do fundo desta aflição opressora.Porque, ai! o pesadelo hediondo que me assombra
Não dá tréguas e, louco, furioso, ciumento,
Multiplica-se como um cortejo de lobos
E enforca-se com o meu destino que ensanguenta!Ah! sofro horrivelmente, ao ponto de o gemido
Desse primeiro homem expulso do ParaĂso
Não passar de uma écloga à vista do meu!E os cuidados que vós podeis ter são apenas
Andorinhas voando à tarde pelo céu
— Querida — num belo dia de um Setembro ameno.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Da Vossa Vista a Minha Vida Pende
Da vossa vista a minha vida pende,
Maior bem para mim nĂŁo pode ser
Que ver-vos, mas nĂŁo ouso de vos ver;
Que vosso alto respeito mo defende.O meu amor, que o vosso sĂł pretende,
Receio que se venha a conhecer,
Nos olhos, que mal podem esconder
O desejo, dum peito que se rende.Por vós a tal estremo d’Amor venho,
Que com força resisto a meu desejo,
Porque nada de mim vos descontente.Mas neste mal, senhora, este bem tenho,
Que sempre tal, qual sois, n’alma vos pinto
Sem dar que ver, nem que falar Ă gente.
Quando em Meu Desvelado Pensamento
Quando em meu desvelado pensamento
O teu formoso gesto se afigura,
NĂŁo sei que afecto sinto, ou que ternura,
Que a toda esta alma dá contentamento.Ali fico num largo esquecimento,
Contemplando na minha conjectura
De teu sereno rosto a graça pura,
De teus olhos o doce movimento.Porém logo a inconstante fantasia
Me acorda o entendimento arrebatado,
E desfaz todo o bem que me fingia,Sendo tal este gosto imaginado,
Que de Amor outra glĂłria eu nĂŁo queria
Mais que trazer-te sempre em meu cuidado.
Ela Ia, Tranquila Pastorinha
Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdĂŁo,
O seu rebanho, a saudade minha…“Em longes terras hás de ser rainha”
Um dia lhe disseram, mas em vĂŁo…
Seu vulto perde-se na escuridĂŁo…
SĂł sua sombra ante meus pĂ©s caminha…Deus te dĂŞ lĂrios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastoraSó sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir…
Falando Ao Céu
Falas ao Céu, Amor! Em vão tu falas!
Mas o céu, esse é velho, esse é velhinho,
Todo ele Ă© branco, faz lembrar o linho
Dos leitos alvos onde tu te embalas.A alma do céu é como velhas salas
Sem ar, sem luz, como lares sem vinho
Sem água e pão, sem fogo e sem carinho,
Sem as mais toscas, as mais simples galas.Sempre surdo, hoje o cĂ©u Ă© mudo, Ă© cego…
Jamais o coração ao céu entrego,
Eu que tĂŁo cego vou por entre abrolhos.Mas se queres tornar jovem e louro
Dá-lhe o bordão do teu amor um pouco
Fala e vista, com a vida dos teus olhos…
Ao Mundo Esconde O Sol Seus Resplendores
Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mĂŁo da Noite embrulha os horizontes;
nĂŁo cantam aves, nĂŁo murmuram fontes,
nĂŁo fala PĂŁ na boca dos pastores.Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.VĂŞnus, Palas e as filhas da MemĂłria,
deixando os grandes templos esquecidos,
nĂŁo se lembram de altares nem de glĂłria.Andam os elementos confundidos:
ah, JĂ´nia, JĂ´nia, dia de vitĂłria
sempre o mais triste foi para os vencidos!
Soneto XXII
Ao mesmo
Rico Almazém, que Deus estima e preza,
Mais forte que o poder do inferno forte,
Bem te armas de ua morte e de outra morte,
Para qualquer encontro e brava empresa.Arma-se o fraco cá de fortaleza
Para que assi resista ao duro corte;
Mas Deus sempre peleja d’outra sorte,
Cobrindo o forte de mortal fraqueza.Usou c’o inferno deste prĂłprio modo,
Iscando o anzol da natureza sua
Co’ a nossa; e foi-se o pece trás o engano.E co’ as armas da carne rota e nua
Dos Mártires venceu o mundo todo,
Hoje em ti as põem para socorro humano.